Apesar de ser dado a memorizar datas históricas, há duas que nunca esquecerei: o início da II Guerra Mundial e o ataque japonês a Pearl Harbor.
O início da II Guerra Mundial foi em 1939, poucos dias antes do meu pai nascer. Muitas vezes, em tom de brincadeira, até lhe costumo dizer que ele nasceu e começou logo uma guerra. Sendo alguém pacifista, sempre achei irónico que tivesse nascido na mesma altura em que o mundo iniciava uma enorme guerra, onde os governantes ditatoriais queriam, sobretudo, o sangue adversário. Em 1941, poucos dias depois do ataque a Pearl Harbor, realizado pelo Império Japonês, nascia a minha mãe. Ou seja, sou filho de pessoas que nasceram com e cresceram com a guerra.
As recordações, obviamente, não são as luzes das bombas a cair ou os soldados a caminhar nas ruas, muito menos as imagem da televisão a mostrar a guerra em direto. Lembram, essencialmente, o racionamento de comida e bens de primeira necessidade; a falta de alimentos que não se semeavam no campo ou se pescavam no mar; enfim, a memória leva-os àquilo que inventavam na cozinha, criando pratos onde se comia o que era possível e exista. Graças a essa imaginação vulgarizou-se e aprimorou-se o famoso Xarém ou nasceu o atualmente famoso e caro Litão, que, à época, não era outra coisa senão um peixe semelhante à pata-roxa, sem nenhum sabor especial, mas depois de seco, demolhado e cozinhado ganhava a capacidade de absorver todos os temperos que lhe eram colocados, tornando-se uma boa proteína e, o seu alto valor nutricional permitia que quem o usasse fosse enganando a fome, principalmente no Inverno, quando era mais difícil encontrar alimentos. Em Portugal não se vivia em guerra, mas sofria-se com a guerra, que estava instalada em países, que os meus pais e outras crianças nem sabiam bem onde eram, porque o google maps ainda não trazia ao seu dia-a-dia a noção das distâncias e das localizações.
Está claro que as crianças nascidas em Portugal, em fevereiro e março de 2022, não vão ter a comida racionada devido a uma guerra que lavra em países, que todos sabemos onde ficam e cujas imagens nos entram olhos adentro por todos os meios e canais de comunicação, atualmente disponíveis.
Também está claro, que no presente temos dificuldade em compreender porque é que o maior pais do mundo, ainda quer mais terreno e anexar outro país. Sobretudo, para nós portugueses, essa interrogação faz sentido, quando nos lembramos que as nossas fronteiras estão estáveis há mais de 800 anos e, que tirando a exceção da guerra colonial, nem por Olivença lutámos, a não ser os patrioticamente lunáticos e arcaicos.
Mas, provavelmente, vamos sentir com igual intensidade os efeitos desta guerra de 2022. O preço das matérias-primas, dos combustíveis e, até, do milho para fazer o Xarém, que vem da Rússia e Ucrânia, vai aumentar…
Mais que tudo, vamos sofrer com todas as pessoas com quem estabelecemos laços fortes, depois da onda de imigração ucraniana para Portugal e que, hoje, fazem parte da nossa multicultural comunidade. O mundo é mais próximo, tudo está mais perto, sabemos onde é, onde fica. Temos imagens, amigos e laços profundos, que foram criados nas últimas décadas.
E são esses laços relacionais, civilizacionais e culturais que nos devem motivar à reflexão e ao repúdio de uma onda de violência, motivada pela vontade de ter mais e que coloca a nossa segurança em risco. Mais: que nos garantem que não apagamos o outro, como refere Mia Couto, o escritor moçambicano: «O que se pretende em toda e qualquer guerra não é apenas ganhar. É abolir o inimigo, dissolver o Outro. É fazer desaparecer, não apenas, o adversário, mas todo o seu mundo. Pretende-se anular a sua história, apagar a sua memória».
Se em 1939 prevaleceu a insanidade dos que quiseram a guerra, que hoje, sabendo as consequências que ela traz, obrigando-nos, involuntariamente, a abdicar de tudo, incluindo a liberdade, não enveredemos por esse caminho, que marca para sempre.
Que o Senhor nos livre da guerra!