
“O sofrimento dos outros nunca nos pode ser indiferente e nunca está demasiado longe para nós podermos fazer alguma coisa”. Foi com esta frase que a algarvia Lígia Gonçalves explicou no passado dia 29 de março porque é que iria ser voluntária no improvisado campo de refugiados de Idomeni, no norte da Grécia, na fronteira com a Macedónia.

A algarvia, que já participou em cinco missões em Moçambique entre 2004 e 2008 para trabalhar com comunidades locais, crianças órfãs de pais que morreram de SIDA e jovens estudantes, promoveu em Faro um concerto de solidariedade com os refugiados de Idomeni com Dino D’Santiago, acompanhado por Tuniko Goulart no violão e Elísio Pereira na voz.
“As experiências em Moçambique ajudaram-me a ter esta sensação de que faço parte do mundo. Os outros estão sempre no meu coração e interrogo-me sempre sobre o que é que posso fazer”, afirmou a missionária algarvia ao Folha do Domingo.
Lígia Gonçalves partiu ontem à tarde para trabalhar durante as próximas três semanas naquele campo que era um pequeno local de passagem para cerca de 500 pessoas antes de a Macedónia ter fechado as portas, no início de março, e que depois disso, segundo os órgãos de comunicação social europeus, se foi transformando numa pequena cidade com cerca de 12.000 habitantes, “onde há cafés e barbearias, mas acima de tudo tendas enterradas em lama e expostas à chuva, ao vento e ao frio”, como explicou o jornal Público.

Lígia Gonçalves conta que os dados recebidos a semana passada confirmam a quantidade das pessoas que já ali estão a “passar pelas necessidades mais básicas de tudo: de teto, de chão, de saúde, de comida, de agasalho”. “Chegam-nos apelos constantes para que possamos fazer lá chegar todos os bens materiais de que precisam, mas também pessoas que possam ajudar a distribuir esses bens. Temo-nos mantido em contacto com as redes de voluntários dos vários campos e, recebendo esta solicitação de Idomeni e sabendo que é nesta altura o [campo] mais necessitado de pessoas, decidimos ir para lá”, contou no Espaço CAPA, onde teve lugar com amigos e familiares o evento solidário. A iniciativa contou também com a presença de Elisabete Maisão, voluntária portuguesa que percorreu, durante os últimos três meses, os principais campos de refugiados europeus e com quem a missionária algarvia seguiu ontem rumo à Grécia.
“Não nos metemos em questões políticas, não queremos discutir se é humilhante ou não fechar portas, embora fechar portas seja sempre uma coisa muito mazinha. Unicamente sabemos que são pessoas que estão lá e que pertencem à mesma família humana que nós”, afirmou Lídia Gonçalves, lembrando que aqueles migrantes fogem da violência, da guerra, da fome e “têm que abandonar as suas casas e as suas terras, a sua liberdade e são dignas de algum esforço para que vivam melhor e para que tenham alguma vida”. “Elas nem pedem uma vida melhor, muitas vezes só pedem mesmo uma vida”, acrescenta.
“Aquilo que eu quero é, a cada noite, quando me deito, pensar que consigo fazer alguma coisa para que o mundo seja um bocadinho melhor”, afirmou Lígia Gonçalves, desafiando cada um dos presentes a “contagiar também outros” no mesmo sentido. “Há marginalizados, vulneráveis e necessitados em todo o sítio e cada um de nós pode sempre fazer alguma coisa, mesmo que seja só um pensamento de carinho”, acrescentou.
Lígia Gonçalves procurou fazer mais do que isso e explicou porquê. “Nós vamos para a nossa aventura e vamos também tentar levar abraços àqueles que precisam de tudo e tudo pode ir dentro de um abraço. Espalhem também pelos outros que quando ouvirem falar de refugiados e de imigrantes não pensem em terroristas, em maus e em diferentes. Que gastem a energia que têm em cada vida, em cada coração, em entender que todos os homens são realmente iguais e que alguns estão a precisar daquilo que para nós é nada, mas, às vezes, o nada é tudo”, prosseguiu.
A missionária, que nos últimos anos tem feito experiências missionárias em Portugal com pessoas necessitadas de zonas problemáticas, explicou ao Folha do Domingo que ao ver a questão dos refugiados a complicar-se entendeu que “tinha de fazer alguma coisa”. “Inicialmente até pensei ir para [o campo de] Dunkerque (França) porque diziam que tinha muitas necessidades, mas agora está mais ou menos organizado. Através de uma rede de voluntários internacionais apercebi-me que o sítio mais necessitado neste momento é Idomeni”, contou, acrescentando serem estas redes de voluntariado que, no terreno, asseguram o apoio aos migrantes e não as ONG’s ou outras organizações “muito financiadas”.

Elisabete Maisão já esteve em campos de refugiados da Alemanha, Áustria, Bélgica, Croácia, Eslovênia, França, Grécia, Macedónia e Sérvia, não tendo conseguido entrar apenas em dois, um na Croácia e outro na Macedónia. “O que vamos encontrar vai ser muito parecido com Calais”, afirmou, comparando com a situação que presenciou durante um mês no campo francês, um dos maiores da Europa. “Quando estive em Idomeni era um campo, muito afastado, apenas de trânsito”, acrescentou aquela missionária, referindo que, na altura, a passagem da fronteira era permitida a três nacionalidades: afegãos, iraquianos e sírios. “Neste momento a situação é complicada. Fecharam a fronteira e, por isso, estão a acumular tantas pessoas ali”, referiu ao Folha do Domingo aquela missionária que esteve uma semana naquele campo que diz viver a “situação mais caótica” e outra no da ilha grega de Lesbos.
A voluntária conta que mesmo assim “alguns conseguem passar”. “Ainda ontem [27 de março] falei com um amigo afegão está na Bélgica que me disse que um amigo dele conseguiu passar e chegar também à Bélgica”, testemunhou, garantindo haver “muitas formas de conseguir passar as barreiras” que podem passar desde o recurso a traficantes, a furar as redes ou contornando as barreiras. “Há sempre forma de passar”, garante.

Elisabete Maisão lembra que os refugiados que chegavam a Idomeni vinham da Turquia, passando por Lesbos. “Em Lesbos já estava frio, mas quando chegavam à fronteira da Macedónia tinham um inverno bem rigoroso pela frente. Na Sérvia estava 10 graus negativos. Na fronteira já estava muito frio e as pessoas precisavam de agasalhos diferentes dos que precisaram na Turquia e em Lesbos”, testemunha, acrescentando que lhes distribuíam “alguma roupa mais quente, sapatos e gorros para as crianças” porque não tinham roupas quentes. “Era-lhes servido um chá, uma refeição ou um lanchinho mais básico e depois eles passavam a fronteira para chegar à Macedónia. Depois andavam um quilómetro até ao próximo comboio para seguirem viagem até à Sérvia”, acrescenta, lembrando a situação vivida há um mês no campo de Idomeni, diferente da atual, quando os maiores campos de refugiados europeus eram os de Dunkerque e Calais. “Agora estão lá acumulados. Sei que há alguns donativos a chegar e não há mãos para distribui-los”, conta, explicando que até chegaram a pensar organizar uma caravana desde Portugal. “Desistimos porque era muito dispendioso”, justificou.
Elisabete Maisão explica que os refugiados que chegam aos campos europeus são oriundos do Afeganistão, Irão, Iraque, Líbano, Síria e Sudão. “No Afeganistão são ameaçados pelos talibãs, tendo de ficar a lutar com eles. Os que recusam são ameaçados de morte e a família toda é morta. Por isso, não têm outra alternativa senão sair do país”, conta.
A voluntária diz que a sua ideia dos refugiados mudou “muito” depois da experiência vivida nos campos e reconhece que tinha “algum preconceito em relação à religião muçulmana”. “Aquilo que consumimos aqui é que a religião muçulmana é aquele terror todo. Para mim foi uma aprendizagem conhecer realmente e desmistificar essa desconfiança pelo desconhecido. Deu-me oportunidade de conhecer e de perceber para conseguir separar o que é o Estado Islâmico de uma religião que não é feita para matar. Conheci uma pessoa da Síria que se tinha convertido ao Cristianismo e estava a ser perseguida. Neste momento está na Grécia como voluntário”, acrescentou, considerando que a imigração só traz enriquecimento.
“Ao aproximar-me, ao conhecer pessoas e ao criar amizades com essas pessoas vejo a situação de forma completamente diferente. Já não é lá longe, é no meu «quintal» porque essas pessoas tornaram-se amigas e têm amigos ou familiares na mesma situação. Portanto, é como se tivesse a minha família a viver esta situação”, sustentou, acrescentando que, ao ver as notícias, não consegue “ficar aqui como se nada fosse”. “Porque não consigo esquecer a experiência, tenho que ir de novo”, refere.

O concerto solidário promovido por Lígia Gonçalves resultou na angariação de 362 euros, o equivalente ao valor de uma viagem para Idomeni. “Alguns de vocês trouxeram donativos que nós vamos levar. Outros partilharam connosco das suas economias. A todos agradecemos em nome daqueles cujos olhos poderão sorrir ao ganhar um bocadinho mais de vida”, agradeceu a algarvia que deixou um desafio. “Quando voltarmos, prometo que lançarei o desafio para nos encontrarmos de novo e podermos contar e partilhar aquilo que vivemos, para que o mundo inteiro caiba no coração de cada um de nós e não sejamos indiferentes e não achemos que Idomeni é o fim do mundo porque é ao pé de nós”, garantiu a missionária cuja situação de desemprego em que agora ficou também proporcionou a oportunidade de poder partir nesta experiência.
