Francisco, o Papa que na atualidade guia a Igreja de Cristo, há muito que deu nota, em tudo o que ia dizendo ou escrevendo, que considerava que o caminho para a construção da Cidade de Deus, aquela onde todos os homens serão finalmente felizes, só se fará pela estrada do respeito pelos outros e pela natureza, pelo caminho da amizade, pela autoestrada da partilha e da presença, testemunhando em todos os momentos e ocasiões a nossa identidade cristã.
«”FRATELLI TUTTI”: escrevia São Francisco de Assis, dirigindo-se a seus irmãos e irmãs para lhes propor uma forma de vida com sabor a Evangelho. Destes conselhos, quero destacar o convite a um amor que ultrapassa as barreiras da geografia e do espaço; nele declara feliz quem ama o outro, «o seu irmão, tanto quando está longe, como quando está junto de si». Com poucas e simples palavras, explicou o essencial duma fraternidade aberta, que permite reconhecer, valorizar e amar todas as pessoas independentemente da sua proximidade física, do ponto da terra onde cada uma nasceu ou habita». É esta identidade cristã, lembrada nas palavras de S. Francisco de Assis que abrem esta encíclica, que o atual Papa, no seu último texto, ao abordar questões sociais, económicas ou políticas, quer que não só aos católicos, mas também a todos os homens e mulheres de boa vontade possam pôr em evidência (esta prática de se dirigir deste modo foi iniciada pelo Papa João XXIII com a sua encíclica Pacem in terris – 1963 e seguida por todos os Santos Padres, sempre que se abordam estas temáticas).
Regressamos, nesta proposta, ao essencial do cristianismo, àquilo que não está assente em normas e regras, mas que está na base identitária de cada cristão: os valores centrais que nos devem nortear e fazer crescer, sobretudo o valor da fraternidade, esse que se encontra profundamente esquecido na ética social contemporânea e nos programas de desenvolvimento tão sofisticados que vemos crescer à nossa volta. A fraternidade e amizade social são, para o Papa, aquilo que pode salvar as relações entre os povos, as democracias, até as religiões. Situa-se num momento antes da política ela mesma, num momento em que apenas e só existe o Homem e a sua relação com os demais. De uma enorme profundidade, este texto aborda conceitos como a dignidade, para lhes dar novas expressões e dimensões, assentes nas ideias de que o sujeito é uma construção da graça divina e do encontro com o seu semelhante. Fala dos acontecimentos da vida contemporânea, como as migrações e o problema dos refugiados; aborda a liturgia, a vida dos crentes e o perigo dos populismos na vida política, chamando a atenção para o facto de a fraternidade, que estando num patamar anterior à politica, deverá fazer-nos despertar para o valor do outro e para as questões da manipulação e do aproveitamento que normalmente existem em favor de ideias que não beneficiam todos. Francisco dá-nos muito claramente a noção de que a Igreja não deve viver fechada em si mesma (aliás, já nos havia desafiado, no início do seu pontificado, a sair para as periferias), pois ela trata do mundo, dos povos, da relação que todos temos e devemos construir como “todos irmãos – Fratelli Tutti”.
D. Manuel Linda, Bispo do Porto, a propósito desta encíclica, dizia que este documento é um desafio para todas as religiões do mundo, pois se «o cristianismo, o judaísmo, o islamismo, as religiões orientais, todas» não conseguirem «dar as mãos, a fraternidade continuará a eterna desconhecida» e todas elas encontram uma «base comum para solidificarem os laços da sua união e para intervirem no mundo» (Ecclesia).
D. António Marto, referindo-se à «alternativa de Francisco», dizia que esta proposta é «a coluna vertebral para o mundo» e que a mesma «condensa o pensamento social da Igreja numa nova narrativa» (Ecclesia).
D. Tolentino de Mendonça vê a encíclica como «uma radiografia da hora presente» que «coloca o dedo na ferida, e nos mostra a necessidade que todas as gerações têm de refletir sobre a fraternidade, denunciando a perda da memória histórica, o que tem levado a sociedade atual a aceitar viver sem um projeto social capaz de incluir a todos». Ela envolve-nos, nas palavras do cardeal, «na transformação do próprio mundo, do nosso tempo» (Educris).
Este projeto, esta alternativa de Francisco, resulta somente da necessidade de acertar o passo de todos nós, cristãos e demais homens e mulheres de boa vontade, para que fraternamente caminhemos na tal estrada que nos levará à construção de um mundo verdadeiramente melhor, um mundo onde se concretize aquilo que Deus nos pede quotidianamente que sejamos. A alternativa de Francisco é o desafio a que somos chamados todos os seres humanos, mas sobretudo os batizados, que se comprometem a ser luz do mundo e sal da terra, pondo em prática as «profundas convicções da sua própria fé: a dignidade inalienável de toda a pessoa humana, independentemente da sua origem, cor ou religião, e a lei suprema do amor fraterno» (Fratelli Tutti, p. 39).