Dezoito dias em confinamento. Primeiro de forma voluntária, atualmente por respeito à seriedade da situação. Passo os olhos pelas fotografias guardadas no meu telemóvel, situações de um quotidiano que agora parece tão distante. E neste cenário, vejo a última foto que tirei antes do mundo entrar em “quarentena”. A foto captou uma imagem intrigante. Enquanto circulava a pé pelas ruas de Faro, nas habituais pressas “pré-quarentena“, vejo uma moldura que me chamou a atenção. Encostada a um contentor do lixo, ladeada por plásticos e detritos, ali estava no chão,uma bênção de Sua Santidade, o Papa João Paulo II. Desconhecendo o contexto que causou a imagem que via, parei e olhei para o documento oficial, emoldurado e com um vidro embaciado, no chão encostado ao lixo. E pensei: que analogia estranha era a que eu acabara de ver. Embora uma manifestação “material” e terrena, o seu simbolismo espiritual e transcendente não deixa de estar “presente”. Pensei que estranho era ver o rosto de uma figura tão especial, encostado ao lixo de uma cidade. Não sabendo bem o que fazer, tirei a fotografia e segui apressadamente para a rotina do trânsito, dos horários, dos trabalhos e tudo mais, acabando por esquecer a situação pouco depois.

Hoje, quando revisito a fotografia, surge-me de novo a analogia, agora mais concretamente definida. Ao longo da vida, por vezes sem nos apercebermos, deitamos a espiritualidade ao lixo. Descartamos completamente aquilo que não vemos, que não “sentimos”, que é “irreal” e “irrelevante” para o verdadeiro rumo das coisas, o desenrolar da vida terrena em nada se altera com o “espírito”. Nesse estado de espírito, deambulamos pelas ruas, apressados e alheios a tudo o que nos transcende. Chateados com as pequenas falhas das nossas rotinas, com as atitudes dos que nos rodeiam, com as frustrações do que não alcançámos.

Preocupados apenas com o que vemos no nosso dia-a-dia, esquecemos que a nossa existência pressupõe muito mais do que o nosso quotidiano. Nessa pressa constante que é a vida, somos tentados a descartar aquilo que não vemos, que não nos beneficia momentaneamente, que não se nos apresenta “plausível” e tudo mais.

Tudo isto, quando vivemos uma situação como esta, que o mundo trava abruptamente. Em que o nosso quotidiano se apresenta fútil, em que encaramos a possibilidade de perder aquilo que tomámos por garantido. Em que começamos a ter saudades dos tempos em que nos queixávamos sem razão. Aí, começamos a entender o poder das “coisas” que não vemos.

Será pouco producente continuar a menosprezar aquilo que não vemos. Então porquê fazê-lo com os deveres do espírito? Cedo se levantam as vozes contra a Igreja, pois é a ciência quem nos poderá salvar destas situações. Mas será correto esquecer o que a Igreja e a Fé nos têm a oferecer nestas alturas? A Fé em nós, Humanidade, que seremos capazes de lidar com estes percalços. A Fé em cada um que faz a sua parte, com humildade, mesmo sabendo que ninguém o vê e continua para o bem de todos. Como nos dizia Sua Santidade, o Papa Francisco, na sua homilia proferida por ocasião da concessão da bênção Urbi et Orbi, “Porque sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?”. O papel da Fé e da esperança é o que nos guia nas fases mais turbulentas. Mas não só; também nos deve guiar em todas as fases, para que estejamos em constante harmonia com a nossa existência, para que quando confrontados com as fases da vida, não nos sintamos arrependidos de não aproveitar as bênçãos de cada dia epara que aceitemos o que cada um tem a oferecer.

Por isso, não me querendo alongar mais, sujeito a perder a mensagem que quero transmitir, para me envolver em temas complexos, nos quais não domino conhecimentos suficientes para formular uma opinião, termino com o apelo para que não depositemos a espiritualidade no lixo.

Sejamos unidos e gratos pela simplicidade dos nossos dias, conscientes que a harmonia terrena advém de uma harmonia espiritual. Não sejamos tentados a perder a Fé, por medo ou ignorância, pois “Vai ficar tudo bem”.