Padre Miguel Neto

«Pensemos nas crianças (…) usadas e exploradas nas nossas estradas por muitos, inclusive cristãos, que perderam o sentido da sacralidade própria e alheia. Como aquela menor de corpinho frágil, encontrada uma noite em Roma, com uma fila de homens a bordo de carros luxuosos para dela se aproveitarem. E, no entanto, poderia ter a idade das suas filhas… Que grande desequilíbrio pode criar esta violência na vida de tantas jovens que sentem apenas o abuso, a arrogância e a indiferença de quem, de noite e de dia, as procura, usa, explora, para depois as jogar de novo na estrada como presa do próximo mercante de vidas!»

Há dias atrás reli esta reflexão contida na Via Sacra presidida pelo Papa Francisco este ano, na Semana Santa, a famosa Via Sacra do Coliseu de Roma. Essas palavras foram escritas por uma religiosa missionária da Consolata, que trabalha com os mais pobres, com refugiados e excluídos, a Irmã Eugenia Bonetti. Pensei nela e em muitas outras religiosas que pelo mundo fora desenvolvem um trabalho muitas vezes silencioso, como é por norma o trabalho da Igreja viva, aquele que se sente, que toca as pessoas, mas que não se alardeia aos quatro ventos, como se de propaganda política se tratasse.

Pensei nos sacrifícios grandes que fazem, plenas de alegria, apenas e só porque decidiram servir não somente a Deus, mas a Ele através dos irmãos, ajudando-os a encontrar caminhos melhores e mais dignos no mais profundo e humano sentido da palavra.

Sofrem tantas vezes de muitas privações, que não são somente físicas, mas que as martirizam interiormente, porque agindo com as possibilidades reais de que dispõem, não têm na maioria das vezes a capacidade para mudar os problemas que as rodeiam e que afligem aqueles a quem dão apoio. E essa será, estou certo, na maioria dos casos, a maior causa de dor para estas servidoras da Igreja e de Cristo.

Vi-as como formiguinhas que, laboriosa e silenciosamente, trabalham, curam, ensinam, guiam, sorriem, apoiam… pessoas que existem, que promovem ações reais e concretas, mas que muitas vezes são como uma sombra e vivem nessa sombra, sem reconhecimento de méritos ou sem expressão sonora de opiniões. Procuram derrubar barreiras e vencer estereótipos, procuram acabar com problemas pequenos na escala, mas grandes na força que afeta quem individualmente os vive. Não fazem parte de movimentos, nem de associações, nem de grupos de pressão, nem de coisas que na sociedade contemporânea são muito importantes para se comunicarem causas e se angariarem simpatias. Apenas trabalham, pondo as suas mãos, o seu afeto e os seus dons no conjunto dos que procuram fazer deste um mundo melhor.

Naturalmente integram a multidão de crentes que são chamados a ser santos. Estarão entre os muitos santos anónimos, que nunca (re)conheceremos, daqueles que celebraremos dentro de dias, a 1 de novembro. Fazem parte dos que, dentro da Igreja, procuram promover o amor pelo próximo, mandamento maior dos cristãos, que é muito fácil de proclamar e tão difícil de cumprir.

Estas palavras da Ir. Bonetti foram escritas a propósito do texto de Mateus (Mt 25, 40): «Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes». E quem são estes “mais pequeninos”? São sempre os pobres, ou os que têm fome? São os doentes ou os jovens que precisam de escola e catequese? Quem são?…

Muitas vezes nem sabemos bem. Há congregações, como as Adoradoras, que se dedicam a apoiar mulheres vítimas de violência ou de prostituição, procurando dar-lhes outros caminhos de vida; ou as Irmãs Oblatas do Santíssimo Redentor, que também promovem a integração das vítimas de exploração sexual e tráfico humano; ou as Irmãs da Consolata, ou tantas outras que nunca conseguiremos enumerar nem identificar totalmente o seu objeto de ação.

Deveria bastar-nos saber que fazem o bem. A nós e aos “mais pequeninos” que apoiam. E esses “mais pequeninos” deveriam somente ser gratos pelo bem que lhes é oferecido… Mas isso nem sempre acontece. Não aconteceu à Irmã Maria Antónia, freira da Congregação das Servas de Maria Ministras dos Enfermos, que foi assassinada por um homem a quem ajudava.

O seu sorriso já não vai mais ser visto e a mota em que se deslocava está parada. O bem que era razão da sua vida, não mais será feito pelas suas mãos. Ela não mais falará.

E nós, falaremos por ela?…

Diremos aquilo que verdadeiramente importa, ou somente nos preocuparemos com as costumeiras polémicas: a Igreja não fala das vítimas de violência (Injusto! O próprio Papa Francisco o faz tantas vezes e dou somente alguns exemplos: em fevereiro de 2015, através do Conselho Pontifício da Cultura, organismo da Santa Sé, na assembleia plenária dedicada ao tema “Culturas femininas: igualdade e diferença”; em Trujillo, janeiro de 2018, referindo-se às vítimas de femicídio; falando aos jornalistas que viagem do Dubai para Roma, depois de uma viagem apostólica, em fevereiro de 2019); a Igreja deveria era defender todas as mulheres e não somente uma freira que foi assassinada; a Igreja tem os seus próprios pecados e dentro dela há violência; a justiça não cumpriu o seu papel e está demasiado burocratizada? É isso que importa dizer?!…

A Igreja portuguesa, através de dois dos seus bispos – do Porto e do Algarve – e da Comissão Nacional Justiça e Paz já se manifestou. E a nós, o que nos toca?

Não só sermos solidários com esta Irmã que perdeu a vida, mas honrarmos a sua história. Sorrindo, devemos recordá-la, falar dela, acolhê-la agora, que na hora da sua morte se tornou uma pessoa presente para além da terra onde viveu e do seu círculo de ação, presente na comunidade dos cristãos portugueses. Fazer do seu exemplo um exemplo a recordar. E que a morte triste que a Irmã Maria Antónia teve possa ganhar algum sentido, se dela resultar o bem que ela gostava de fazer. Cabe-nos, pois, refletir e não deixar que o silêncio engula esta história e outras, histórias de bem, que precisam de ganhar assas e voar até ao infinito, para que pelo menos alguns dos santos que somos chamados a ser, aqueles que vivem ao nosso lado e não somente nos alteres, nos inspirem na nossa própria caminhada.