A campainha tocou. “É mademoiselle”, diz-me minha mulher da cozinha, onde ultimava a ceia. E assim foi. Mademoiselle Marie Dumas vinha, numa septuagenária clássica, num tailleur- Chanel, um ligeiro renard cobrindo-lhe o colo. Entrou muito serena e satisfeita por ter sido convidada para a nossa consoada à portuguesa. Ela habitava no 5.º andar do nosso edifício. Retirou a raposa, logo o chapéu, que uma breve renda lhe ocultava o rosto. E nessas coisas simples, ficámos à vontade. O perfume das fatias douradas envoltas em canela, a cheiro forte das ostras abertas, ao contrário dos franceses que as apreciam ao cru, o forte odor do bacalhau cozido nas verduras, davam um prazer desconhecido à senhora nossa convidada, eterna solteira e sem família, que esperava reviver o seu tempo de tê-la. Marie Dumas, pousou as suas mãos nas nossas e, em palavras: Je suis heureuse ce soir de Nöel (Estou feliz nesta Noite de Natal). Sentámo-nos em redor da mesa em toalha alva, plena de acepipes da culinária lusa, em que o champagne francês não faltou. Muito suavemente, os cânticos de Natal, postos em disco, ganharam o nosso silêncio. Mademoiselle, num olhar muito azul, oferecia-nos alegria. Ceia iniciada, Marie Dumas, numa delicadeza sublime, tudo foi aceitando. Mas quando pretendi vazar champagne no seu copo, na mesma delicadeza, rejeitou. Fomos continuando, no entanto reparei que a senhora se sentia incomodada por ter recusado o vinho, justificando o acto de rejeição, dizendo: “Desde que meu pai faleceu, num bombardeamento, durante a última guerra, não mais bebi champagne”. Silenciou por instantes, logo recomeçou: Em França, ou pelo menos entre nós, sempre tivemos o costume em satisfazer a última vontade de quem vai morrer, oferecendo, ao moribundo, um golo dessa bebida. Assim foi com o meu pai antes de falecer. Logo jurei que daí em diante não mais beberia champagne… E, num sorriso, sem ser de circunstância, disse: “Mas para quê estas tristes recordações em tempo tão alegre e virtuoso do nascimento de Jesus? Este é o tempo da vossa juventude”. Então reparei que o recordar é um acto terapêutico, entrando na idade da minha convidada, insisti: “Diga-nos, mademoiselle, desse seu sentir. Conte, far-lhe-á bem, alivia”. Feita uma breve espera, a senhora reiniciou a conversa do seu tempo perdido.
“Nasci quando o século começou… o século das guerras. Por isso passei pelas guerras dele. Tinha 17 anos,estava noiva,quando o meu prometido foi atravessado pelas balas alemãs. Não foi só ele… foram mais 12 milhões de jovens que perderam a vida, nos lados dela. Fiquei uma jovem viúva… de branco. Até que chegue a 2.ª guerra mundial, e foi o que foi… Este foi o meu viver. Fiquei solteira, chegando a solteirona. Os homens do meu tempo morreram aos milhões. Ficámos sem homens! Ganhei um ofício, o mais possível no meu tempo: a costura. Fiz-me empresária. Fui vivendo com meus pais e o meu irmão que escapou pela idade menor. Éramos uma família, possivelmente, feliz. Até que chegou 1939 e tudo voltou. Foi o recomeço de 20 anos passados: A 11 de Novembro de 1942 a cidade estava ocupada por 3.000 soldados nazis. Os Alemães invadiram-nos. Eles controlaram todas as nossas vidas, administrações e todas as nossas actividades ficaram sem eficacia. Os alemães interviram de maneira sistemática em todos os sectores da nossa vida quotidiana. O marechal Pétain, nesse governo fantoche de Vichy, veio-nos provocar em obediência. Os senhores das nações e da guerra utilizam-nos como propriedade deles.” Pousou de novo as suas mãos sobre as nossas. Os olhos marejaram. Reparei que o seu corpo, alto e elgante, crescera na cadeira. E, decidamente, disse, erguendo-se: “Vou quebrar o juramento… senão, como ganharei coragem para desabafar o que guardo desde os meus 40 anos”. E, erguendo-se, pegando num copo, fez um pedido: “Monsieur, Madame, sirvam-me do vosso champagne, je Vous en pris (peço-vous). O tempo dos meus segredos já se gastou.” Marie Dumas estendeu-nos o copo que eu enchi do líquido muito dourado e vivo que saia da garrafa cantando gás. E continou: “Naquela tarde de Natal, de 1943, eu e minha mãe fomos a um lugar perto, ao campo de Rochetaillée, à casa de paisanos conhecidos, em busca de ovos e manteiga. A cidade estava cheia de fome. Nevava, cruelmente. Ouvímos a aviação. Não tivemos tempo. Minha mãe foi atingida mortalmente e foi escorregando pelo gelo,sem que lhe pudesse acudir. Meu Deus… como O insultei nesse momento de fraqueza e de dúvida. Ficara órfão… só meu irmão me restava. E esse andava na resistência, com os demais.
A cidade organizara-se em força. Saint-Etienne participava activamente na publicação da imprensa clandestina, desde a Impressora Bornier a imprimir Les Cahiers du Témoignage Chrétien. As escolas, tendo à frente a jovem Violette Maurice, os sindicatos, CFTC e CGT, em força operária. E as perseguições, as torturas, os fusilamentos, as deportações em massa para os campos de concentração. A colónia judaica, em cerca de duas centenas, fora brutalmente suprimida. Até que, logo após a morte de minha mâe, meu irmão, num encontro clandestino, exige a minha colaboração” Vingança pela França”. Disse numa força ignorada por mim. Disse-lhe que iria pensar. Respodeu-me: “A França não pode esperar”. A cidade era um arsenal de guerra, Saint-Etienne um sítio de crueldade. Já a resistente Elise Gervais havia sido torturada, violada e assassinada pelos torpes nazis. Era a era da inquietação. Decidi-me colaborar. Contactei meu irmão, que me dissesse da minha participação. Assim foi. Ele mostrou-me o retrato de um oficial nazi: “E isto que queremos que encontres,o seduzas. O resto é com a organização”.
“Nunca soube o nome do oficial alemão que exigiram que eu seduzisse. Num primeiro encontro, numa pastelaria na rua de S. Jean, o “Meu” oficial boche, homem trintão, bem parecido, bem vestido, bem em tudo. Atraído, sentou-se à minha mesa, pela minha sedução estudada, oferecendo-me um gratiné de chocolate. Logo um encontro no Governo Civil, o palácio dos desejos dos oficiais nazis. Contactada a resistência, tudo ficou dependente dessa trágica noite: noite de 26 de Dezembro, dia dedicado à celebração liturgica do mártir S. Etienne, padroeiro da nossa cidade.” Ficou de mãos sobre a aba da mesa em silêncio, no rosto escorreu-lhe uma lágrima. E, quebrando o silêncio por si construído, disse: “O resto fica para outra oportunidade. Esta noite de Natal, não é para mais sangue; basta-nos o que ficou no dia 26 de Maio de 1944, em que a aviação americana, querendo paralizar as vias férreas, o bombardeamento, dito colateral, deixou 1.064 mortos, 2.000 feridos e 15.000 sinistrados.” Um sorriso, acrescentou: Voilá.
“Como se sente madoiselle?” Je suis trés bien. Je me suis retrouvée. C’est tout parti!” (Eu estou bem! Reencontrei-me! O passado acabou”.)
P.S: Excerto adaptado da peça teatral LA NUIT DE MARIE DUMAS, representada em 1970, nas comemorações dos 25 anos do fim da 2.ª Grande Guerra Mundial.
Marie Dumas faleceu em 1975.
O autor deste artigo não o escreveu ao abrigo do novo Acordo Ortográfico