Quando se chega a esta semana do Tempo Pascal, a normalidade do pensamento leva-nos, imediatamente, a falar de duas questões essenciais para quem quer cumprir, na sua vida cristã, a totalidade do Evangelho de Jesus Cristo. A valorização de toda a vida humana, desde a conceção e a valorização de toda a vida humana, mesmo quando alguém está totalmente incapacitado e dependente dos outros, até ao momento da sua morte. Os temas aborto e a eutanásia, por mais debate e dilemas morais, éticos, deontológicos, existenciais que possam suscitar, são algo totalmente inegociável para qualquer cristão, que queira verdadeiramente seguir a Cristo, ou seja, não há opiniões “nim”, nem “mais ou menos”. Por isso, olho com normalidade para os Estados norte-americanos com mais cristãos, que querem reverter qualquer lei civil que possa facilitar o aborto, ou promover a eutanásia.
Porém, para muitos cristãos tradicionalistas, a cultura da vida só parece ser importante na fase inicial e final da vida humana. Frequentemente, esquecem-se que o período que vai do nascimento à morte são longos anos de vida, que tantas vezes é condicionada pelo lugar e a família onde nascemos.
Podemos pensar no seguinte dilema (que não é de todo surreal, nem irreal e que está a acontecer em muitos conflitos): imaginemos que uma mulher muçulmana é violada, num cenário de guerra, na Síria. Como resultado dessa violação, engravida. Tem de fugir do seu país, porque a pena prevista na lei islâmica para estas situações é o apedrejamento. Consegue fugir para o Líbano e do Líbano vai para a Grécia, através de um barco de refugiados. Entretanto, a gravidez vai-se desenvolvendo e, passado uns meses, dá à luz, num campo de onde se encontram muitos outros, fugidos das suas terras. Por causa desta e de outras circunstâncias relacionadas com a gravidez, está na lista dos que serão repatriados. Dilema: ela foi violada e, apesar disso, não abortou, no entanto, a sua vida, a vida do seu filho valem menos do que a vida de qualquer europeu, porque se ela regressar, vai ser castigada por ter “traído” o seu marido, ainda que forçada por um homem sem escrúpulos, ou moral.
Os países mais civilizados, dominados por cristãos tradicionalistas e conservadores, não a aceitam, porque ela é refugiada e de outra religião. Alguns daqueles, nos quais os cristãos querem alterar leis civis que promovem, ou facilitam o aborto. E, todavia, neste hipotético caso, não podemos esquecer que estão em jogo duas vidas, quando podia estar em causa apenas uma, se essa mulher tivesse escolhido abortar… Porque ela, com prejuízo de toda a sua existência, preservou a vida inocente, gerada no terror e não sucumbiu às dificuldades que isso lhe trouxe, mas não é aceite pelos que defendem a total rejeição do aborto…
Não seria melhor que, nós, cristãos, acolhêssemos todas as vidas, porque todos somos Filhos Amados de Deus (diz o Papa Francisco), independentemente do lugar e da família na qual nascemos?
Dei como exemplo um suposto caso, com uma refugiada muçulmana, mas podia dar exemplos com deslocados nos subúrbios das grandes cidades dos Estados Unidos, vindos, sobretudo, da América Latina, ou outras mais, que agora acompanhamos nas notícias vindas da Ucrânia. Isto para não falar do Máli, de Moçambique, da Etiópia, do Iêmen, de Mianmar, da Nigéria, entre mais de vinte conflitos armados, que acontecem neste momento, no mundo. A verdade é que não há vidas mais importantes e cristãs do que outras e não há momentos mais importantes e valiosos na vida humana. A vida humana, em todo o seu percurso e qualquer vida humana vale, para um cristão, como um todo. E se, enquanto cristãos, só defendermos a vida nas situações de aborto, ou de eutanásia, e não nos opusermos, por exemplo, à pena de morte, às condições dadas aos refugiados da guerra, à fome, ou outra catástrofe, não só estamos a ser estupidamente incoerentes, como hipócritas e a não seguir Jesus, Aquele que do alto da cruz onde estava pregado e na qual havia sido condenado a morrer; Aquele, que revelou o Reino de Deus a todos, judeus, cananeus, samaritanos, romanos, etc.; Aquele que moveu o coração do Bom Samaritano, para salvar o inimigo do seu povo, que jazia à beira da estrada. A vida, para um Cristão, tem de ser defendida, sem dúvidas ou hesitações, como o bem maior e mais valioso que Deus nos deu e que só a Ele pertence. Da conceção à morte, todos os dias da nossa existência nesta terra.