Os dias passam entre a monotonia (por vezes muito boa) do teletrabalho, da leitura, do consumo da sétima arte, entre outros afazeres que até então não estavam na agenda por falta de tempo, dizia eu. Sinto-me de facto sortudo por não estar tão exposto a esta pandemia, como muitos que diariamente saem de casa para assegurarem que eu, e vários milhões, tenhamos acesso a um sem número de bens. Brevemente, e sem querer ser injusto, recordo com especial carinho todos os profissionais de saúde que estão na linha da frente deste combate, as forças de segurança pública, e os seguranças distribuídos pelos vários locais com maior afluência de pessoas, para de modo criterioso, controlarem o número de indivíduos que acedem ao seu interior. Lembro ainda os camionistas, os trabalhadores das superfícies comerciais, os voluntários (e são tantos) e os agricultores. Muitos outros deveriam ser invocados, é certo, o que lamento desde já, mas não tenho pretensão de elaborar uma lista perfeita de quem trabalha mais ou menos. Quero somente relembrar que há muita gente que todos os dias arrisca a sua vida por mim, por ti, por todos nós.

Estes e outros que no silêncio e anonimato vão trabalhando, são os heróis hodiernos, sem salários astronómicos, mas com impacto real na vida de todos.

Recordo-me da parábola do bom samaritano (Lc 10, 25-37) contada por Jesus a um entendido na Lei, que O queria colocar à prova, questionando-O sobre o que fazer para alcançar a vida eterna. Com a mestria de sempre, Jesus fê-lo dizer o que está escrito na própria Lei, concluindo este homem que existem duas coisas centrais: o amor a Deus e ao próximo. Vendo ele que não estava a ter sucesso na intenção de “entalar” Jesus, pergunta-Lhe ainda quem é o seu próximo, fazendo com que Jesus contasse a parábola que certamente conhecemos, e que desmancha todos os esquemas mentais da época e também dos nossos dias.

Hoje o mundo está carregado de bons samaritanos. São os que anteriormente referi, e ainda muitos outros. Estes, que num tempo onde todos têm medo, saem de casa, provavelmente com algum receio natural que a situação acarreta, mas não se deixam dominar por ele. Saem porque precisam, e, porque aqueles que como eu podem estar maioritariamente em casa, necessitam deles para acederem aos serviços onde trabalham. Mas, saem porque também há neles um profundo sentido de altruísmo.

À semelhança do bom samaritano que se compadeceu do homem que havia sido espancado e deixado no caminho, que se aproximou e lhe ligou as feridas, levando-o depois para uma estalagem a fim de ser devidamente cuidado, também os bons samaritanos de hoje estão nas várias frentes, a tratar e a cuidar de muitas feridas que este tempo vai abrindo em nós. Nos dias que correm tratar e ligar feridas será certamente proporcionar o acesso aos serviços e bens que necessitamos para viver, e ajudar a minimizar o impacto de um isolamento forçado, mas que bem vivido, pode ser superabundante. Tudo isto se faz com rostos concretos, muitas vezes exaustos, e em sofrimento por terem de renunciar às próprias famílias, para que eu e tu possamos estar com as nossas confortáveis e tranquilos.

Não respeitarmos as leis de excepção que agora nos são pedidas, e não ter a consciência de que muitos se sacrificam em deterimento do bem da maioria, faz de nós “ladrões” e “sacerdotes” (como refere a parábola) que olham e observam o outro que está ferido e caído, mas que viram a cara e passam adiante porque os seus afazeres e intenções são mais importantes que tudo o resto, mesmo que coloquem em perigo a vida do outro.

Sair de casa sem ser por uma necessidade fundamentada, hoje, amanhã e até que nos digam o contrário, fará de nós maus samaritanos centrados em si e nas suas feridas, sem capacidade de olharmos e tocarmos o sofrimento do outro que passa diante de nós.

O Tempo Pascal que agora vivemos reveste-se de uma profunda alegria e beleza porque o Senhor Ressuscitou. Que estes sentimentos que habitam os bons samaritanos do nosso quotidiano nos possam contagiar, ajudando-nos a compreender que só uma vida transformada em hospedaria gratuita para acolher e tratar as feridas dos outros será verdadeiramente fecunda.