Estimado Noah,
Escrevo estas linhas pouco tempo depois de teres estado desaparecido. Não sei se algum dia as vais ler, e isso não tem qualquer importância. Mesmo assim, deixa-me que te diga algumas coisas. Mais umas, que se juntam a tantas que já te dirigiram. Se chegares a ler esta carta, talvez já estejas extenuado de ver a quantidade de tinta que fizeste correr neste país, mas, lembra-te que foste um dos motivos da sua união. Quando estiveste desaparecido, longe do olhar dos teus pais, durante mais de 30h, não houve ninguém indiferente, ou que não soubesse e comentasse o assunto. Na tua aldeia, nas aldeias vizinhas, noutras regiões, nas grandes cidades e nos arquipélagos.
Não sei se já saberás tudo o que aconteceu e/ou como aconteceu. Talvez não tenhas ainda todas as respostas que querias, ou, nem existam respostas para buscares. Não faz mal. Não é o mais importante. Se te encontrares a ler estas linhas e todas as outras que te foram dirigidas, é porque continuaste a crescer e a enfrentar os desafios da vida. Este foi só o primeiro de muitos.
És um milagre, sabias? Não permitas que te digam o contrário. Quando muitos temiam o pior (eu também) eis que a boa-notícia de te terem encontrado com vida inunda os telejornais e as redes socais. Quando tudo parecia perdido, eis que apareces ou permites ser encontrado para um novo começo. O mundo de todos os que suspiravam por esse momento foi fortemente iluminado, e as trevas vividas pelas horas sufocantes do teu desaparecimento, converteram-se em luz e lágrimas de contentamento.
Não se sabe até ao momento, o que aconteceu ou como aconteceu, com precisão, e confesso-te que isso não me interessa para nada. Escrevo-te apenas porque tens motivos para celebrar.
Imaginas a aflição em que ficaram os teus pais? Eu não, e, por mais que quisesse, não seria capaz de entender a dor sentida, a angústia que lhes deve ter tomado a vida, retirado a vontade de comer, de dormir, de falar, quiçá de viver. Deve ter sido tudo bem pior do que o que consigo escrever. Tenho certeza, mesmo não sabendo o que sentiram.
Escrevo-te também, para te dizer que, como já deves ter dado conta, o mundo onde vives não está recheado apenas de gente boa e altruísta. Há gente má, mesquinha e egoísta. Sabes, houve pessoas que estando preocupadas contigo, tinham uma preocupação maior: encontrar culpados para o sucedido. Rapidamente fizeram dos teus pais o alvo principal do seu ódio, da sua mesquinhez e da falta de amor próprio, espelhado em tanto comentário de rede social e conversa de café. Ainda não tinhas aparecido, e já se tinha montado um tribunal de fariseus que aguardavam os teus pais no banco dos réus. Espero, de coração, que não tenhas lido nada disso.
Noah, o mundo em que vives, constituído por pessoas que, de todos os cantos se uniram, torcendo por um desfecho feliz, tem também muita crueldade disseminada. Há muitas pedras atiradas por mãos que se escondem imediatamente. Existem juízos acerca de tudo e de todos, sem a mínima preocupação de aferir o que é verdadeiro, fazendo com que tantas vidas sejam destruídas e amarrotadas. Existe uma impaciência geral. As pessoas andam aborrecidas e tornam-se egoístas, incapazes de calçar os sapatos dos outros. Mais facilmente estendem o braço para empurrar, do que para ajudar a levantar.
Noah, contudo, não te assustes. Estas pessoas não representam o mundo todo, não são todo o teu país. Mas fica atento, e não te esqueças que a vida é um dom para ser gasto em favor dos outros, seja de que jeito for.
Talvez te tenhas perdido mais vezes, não nos matos da tua aldeia, mas nos caminhos do teu coração, por vezes complexos e estreitos. Sê grato. Foi tudo isso que ajudou a forjar a pessoa que és hoje.
Se te sentires triste com a última parte desta minha carta, guarda só a primeira.
Recebe um abraço, e sê feliz.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia