Um século de vida(s) e de história

O jornal Folha do Domingo cumpre hoje uma data memorável – um século de vida e de história –, constituindo uma das principais memórias daquilo que aconteceu no Algarve (e não só) nos últimos cem anos e, simultaneamente, uma das principais vozes na defesa dos interesses da região.
Fundado pelo então cónego Marcelino António Maria Franco, que viria a ser o único bispo algarvio do Algarve, este periódico surge na sequência da edição de um Boletim do Algarve que, no contexto efervescente da Primeira República, denunciou o ambiente ameaçador sobre o clero.
Não obstante esse objetivo mais focalizado no tempo, o destaque vai para a coragem, determinação e visão implícitas à fundação de um órgão de comunicação que, inspirado pelo mandato de Jesus, ajudasse a entender a sociedade e a realidade na qual se insere a Igreja local à luz dos valores cristãos.
o destaque vai para a coragem, determinação e visão implícitas à fundação de um órgão de comunicação que (…) ajudasse a entender a sociedade e a realidade (…) à luz dos valores cristãos
“Todos sabem que a palavra de Deus, quando aquecida ao fogo de um coração que se abrasa nas chamas do amor divino, tem um poder assombroso, opera maravilhas, produz, cem por cento, segundo expressão do Evangelho. Mas, que efeito poderá fazer esta mesma palavra, por maior zelo que se ponha em anunciá-la, nas almas daqueles que, por qualquer circunstância, não vão ouvi-la? Para esses, pois, de um modo especial, é escrita esta folha que os seus redatores forcejarão por tornar interessante e atraente pela substância e pela forma”, explicava a edição inaugural de Folha do Domingo.
o jornal procurou não dispensar a dimensão religiosa da leitura da vida e da sociedade (…).
Folha do Domingo tem querido trazer a atualidade religiosa para a agenda noticiosa, pretendendo combater o desconhecimento e o preconceito sobre a religião, ajudando a esclarecer, descodificando
Ao longo deste século de história, o jornal procurou não dispensar a dimensão religiosa da leitura da vida e da sociedade, sem a qual ela ficaria incompleta, perdendo a sua integralidade. Folha do Domingo tem querido trazer a atualidade religiosa para a agenda noticiosa, pretendendo combater o desconhecimento e o preconceito sobre a religião, ajudando a esclarecer, descodificando. Neste sentido, procurou sempre ser um órgão de informação generalista do Algarve, especializado em conteúdos religiosos, como disso é exemplo a publicação da leitura de D. Francisco Rendeiro do Concílio Vaticano II, durante a sua participação naquela assembleia magna.
Por outro lado, tem sido necessário diferenciar informação de formação e de opinião, procurando delimitar estas secções e estabelecer um equilíbrio entre elas. Não apenas por isto, o trabalho jornalístico neste meio específico do religioso é dos mais complexos na área da informação. A fronteira existente entre o benefício de informação da comunidade e o perigo de perturbação desta é sempre ténue. É na tensão sobre esta contradição que se tem jogado grande parte do trabalho de quantos passaram no último século pela redação que se iniciou da rua Tenente Valadim e tem continuado na rua do Município.
No fundo, consiste em trabalhar num terreno hipersensível onde a discrição se cruza com o show mediático, a verdade com a oportunidade, o exterior com o interior, o físico com o espiritual, o terreno com o celeste, o efémero com o eterno, o humano com o divino. Não obstante a complexidade desta aprendizagem que vamos fazendo, acreditamos que o desafio continua a valer a pena e que importa prosseguir a caminhada.
Quando nos propomos analisar o que foram estes cem anos há, então, dois binómios que se evidenciam no que respeita a quantos aqui trabalharam: esforço/dedicação e missão/serviço. Sentimo-nos muito pequenos diante da responsabilidade de sermos representantes e continuadores de cem anos de vidas de sucessivas gerações de trabalhadores e colaboradores – muitos já a viver a terceira parte da eternidade – que construíram este centenário, doando-lhe grande parte da sua existência terrena, muitas vezes em situações tão adversas como, por exemplo, a de sujeição auma comissão de censura imposta pela ditadura de um regime. Sentimo-nos assim muito pequenos diante do facto de termos sido nós os agraciados a viver esta celebração em funções na direção do jornal.
Nesta ocasião de ação de graças, importa destacar o investimento da diocese algarvia e o apoio incondicional dos oito bispos do Algarve que em nós confiaram, nos acompanharam e nos impulsionaram, mas também a craveira espiritual, intelectual e humana de homens que consagraram o melhor da sua inteligência e vontade com grandiosa dedicação e amor à causa da imprensa nesta diocese como os saudosos padres Manuel da Cruz Semedo, José Cabrita Vieira Neves, cónego José dos Ramos Bentes, João dos Santos Silva, José Gomes da Encarnação, cónego José Cabrita Júnior, monsenhor Manuel Francisco Pardal, cónego Carlos Patrício, cónego Clementino Pinto, cónego Joaquim José Duarte Nunes, diácono Joaquim Mendes Marques, João Leal, entre muitos outros colaboradores que escreveram e escrevem no jornal.
Este centenário cumpre-se também através de cem anos de trabalho administrativo e de gestão, de composição, impressão e expedição, de tantas vidas ligadas à entretanto extinta Tipografia União, criada para imprimir o Boletim do Algarve e este seu sucedâneo jornal.
Um órgão de comunicação chegar a completar cem anos de vida, passando por tempos de constrangimento, de incerteza e de mudança de vária ordem, é um feito notável. Ainda que as condições atuais sejam difíceis e muitas as limitações provocadas pela redução de colaboradores dos últimos anos, importa realçar o esforço pela Igreja do Algarve para manter este serviço que muito deve também aos leitores e anunciantes de hoje e de ontem.
Neste tempo em que tudo parece condenado à efemeridade, o futuro, ainda que carregado de incerteza, deve ser olhado com prudência e serenidade mas também com esperança e determinação. Como constatou o Papa Francisco o mês passado, na sua mensagem para o 48.º Dia Mundial das Comunicações Sociais,“existem aspetos problemáticos: a velocidade da informação supera a nossa capacidade de reflexão e discernimento, e não permite uma expressão equilibrada e correta de si mesmo”, mas “a revolução nos meios de comunicação e de informação são um grande e apaixonante desafio que requer energias frescas e uma imaginação nova para transmitir aos outros a beleza de Deus”.
Com muita atenção aos novos códigos que se vão impondo com grande velocidade na contemporaneidade da comunicação, continuemos a tentar cumprir esta missão de chegar aos leitores, honrando também aqueles que nos precederam.