O professor de sociologia da Universidade do Algarve João Eduardo Martins — que foi um dos intervenientes no dia 05 de fevereiro na edição inaugural da rubrica ‘Ponto de Cruz’ do portal dos jesuítas em Portugal, que procurou em Portimão refletir sobre as desigualdades sociais no Algarve — começou por lembrar as “especificidades” do Algarve, “desde logo por ser uma região quase totalmente dependente da atividade económica do turismo”.

“O turismo trouxe um desenvolvimento económico interessante desde a sua génese até aos dias atuais, mas desigual e assimétrico”, considerou, acrescentando tratar-se de “uma atividade marcada pela sazonalidade, muito assente em mão-de-obra intermitente, precária e mal remunerada”. “Junta-se a isto o disparar do desemprego quando acaba a época alta e começa a época baixa”, sustentou.

Aquele docente considerou também ser o turismo “que, de certa forma, está na origem das desigualdades de acesso à habitação nos últimos tempos, com uma economia da habitação muito ligada a este setor de atividade e um mercado imobiliário especulativo a inflacionar o preço das casas e dirigido a uma procura, quer nacional quer Internacional, com elevado poder aquisitivo”. “Pode-se juntar a isto a ausência de políticas públicas para a habitação nas últimas décadas que gerou este problema grave por todo o país e com uma expressão forte aqui no Algarve”, lamentou.

Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo

Por outro lado, acrescentou também os “fortes contrastes sociais entre o litoral e o interior”. “A maior parte da atividade económica está centrada no litoral, o que gera um êxodo rural e leva a um despovoamento forte no interior da região”, observou.

No que toca ao acesso a cuidados de saúde disse que a região “está marcada por desigualdades gritantes”, identificou “enormes dificuldades e lacunas, com falta de médicos em várias especialidades que leva inclusivamente ao fecho de urgências em certos dias do mês” e “um enorme aumento nas últimas décadas do mercado privado da saúde que faz depender o acesso à saúde de quem tem dinheiro”. “O novo hospital foi prometido politicamente há dezenas de anos, mas não há sinal dele. Entre muitos outros aspetos, os doentes com cancro no Algarve veem os seus direitos fundamentais violados em termos de espera para cirurgias para além do legalmente permitido e uma parte deles vai fazer tratamentos de radioterapia para Espanha numa unidade de saúde privada”, lamentou.

Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo

Ainda na saúde disse haver “lógicas de gestão privada da economia a irradiar a gestão pública dos hospitais”. “Faz com que falemos de urgências e hospitais em rede, médicos tarefeiros, rácios de produtividade na saúde que remetem para uma saúde contábil e bancária, tudo lógicas de mercado e do novo espírito do capitalismo que não se adequa à gestão do bem público que é a saúde”.

No âmbito da educação lamentou o “abandono escolar precoce acima da média nacional e taxas de insucesso escolar também muito acima” dela. “Também a atividade económica do turismo pode levar a que os jovens das classes populares desistam da escola mais cedo e se orientem para a atividade económica do verão”, relacionou.

Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo

João Eduardo Martins disse que a “hiper-austeridade imposta pela troika, com um governo de direita à época que a quis levar mais longe do que a própria troika, devastou o estado social e as condições de vida das famílias e dos indivíduos”. “Depois tivemos um governo de esquerda que acabou por fazer austeridade por outras vias no Estado Social, na saúde, na proteção social, privilegiando o défice orçamental e a dívida pública, essa ideia das contas certas e de cativações que não deixaram o orçamento sair para a saúde, para a educação, etc. Não é por acaso que vemos os professores, os médicos, os enfermeiros, os polícias, os movimentos sociais em luta pela habitação em protestos frequentes como já não víamos há algum tempo”, prosseguiu, considerando que “a inflação, com a consequente perda do poder de compra, foi o detonador que fez com que tornasse visível o descontentamento social”.

Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo

Aquele sociólogo disse ser “fundamental” o “investimento nas políticas públicas e no Estado Social”, concretamente na saúde, na educação e na proteção social, “desde logo para a melhoria da qualidade de vida das populações e para garantir o cumprimento dos direitos sociais consagrados na Constituição e para o funcionamento da própria democracia”. “O encolhimento do Estado Social significa também o encolhimento, de alguma forma, das classes médias. Estamos a falar dos médicos, dos enfermeiros, dos auxiliares de ação médica, dos professores”, referiu, advertindo que as mulheres são “mais penalizadas do que os homens” porque “trabalham mais no social e na saúde”.

João Eduardo Martins criticou um “modelo económico e financeiro altamente competitivo e excludente dentro de uma lógica de um turbo-capitalismo quase esquizofrénico, com uma individualização do social muito exacerbada”, lamentou que o indivíduo esteja “muito centrado em si próprio” e o “recuo do papel dos coletivos sociais e dos direitos sociais” com “lógicas do capital financeiro global a imporem-se às lógicas do bem comum”. “Quando o Papa Francisco diz que a economia mata, penso que ele sabe do que está a falar e está a alertar toda a gente para isso”, acrescentou.

O docente apelou à “mudança de políticas económicas, financeiras e fiscais” que levem a uma “redistribuição da riqueza”. “Temos de ir buscar a riqueza onde ela está e isto não é tirar a riqueza dos mais ricos, mas é equilibrar no sentido de haver uma distribuição equitativa da riqueza e dos salários”, defendeu, referindo-se a uma “melhoria substantiva dos salários das classes trabalhadoras” com a “subida do salário mínimo, mas também dos salários médios que em Portugal são muito baixos”. “Talvez valesse a pena debater a possibilidade de implementação de um rendimento básico universal, que permita uma vida digna a toda a gente com as necessidades básicas de sobrevivência asseguradas e que seja uma base para depois, a partir do mundo do trabalho, poder acumular outro tipo de rendimentos”, sugeriu ainda.

Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo

Concretamente para o Algarve, o académico defendeu que “a eliminação das portagens na Via do Infante poderia melhorar a qualidade de vida da população”, exortou à construção do hospital central, à “diversificação da atividade económica para fazer face à monocultura do turismo”, à “aposta na elevação dos níveis de qualificação escolar e profissional da população ativa”, ao “combate ao insucesso e ao abandono escolar”, à “aposta na inovação, no desenvolvimento tecnológico, na qualificação das empresas”, a uma “estratégia regional de incentivos à produção local”, ao incentivo de “políticas de apoio à cultura e ao associativismo”, à “promoção de uma cidadania participativa” e a “recuperar o primado das lógicas da fraternidade e da solidariedade em detrimento das lógicas da competição individual”.

Edição inaugural da rubrica ‘Ponto de Cruz’ traçou em Portimão retrato do Algarve a ter em conta em período pré-eleitoral (c/vídeo)