Não há passagem bíblica (Mt 2,1-12), nem solenidade na Igreja mais afável e simples de interpretar e de explicar do que a que relata a adoração dos Magos ao Menino recém-nascido. Mas é, diria eu, muito mais difícil de pôr em prática, ao ponto de o significado desta festa, da manifestação de Deus aos gentios, ser algo que nos passa completamente ao lado. Cada vez mais. E nem sequer ponderamos quais as consequências que poderá ter na nossa vida pessoal e comunitária.
Interrogo-me: como é tão fácil nós não questionarmos a virgindade de Maria, a Crucifixão de Jesus Cristo, a Assunção de Maria, a Imaculada Conceição, enfim, os dogmas essenciais da nossa Fé. No entanto, questionarmos a aceitação de Deus por parte de todos os povos é tão difícil. Aceitar que Deus se manifesta a todos os povos. Celebramos o Dia de Reis, a Epifania do Senhor, mas esquecemo-nos que, no dia-a-dia, isto implica aceitar as outras nações e seus cidadãos. Tornamo-nos como os Judeus; tornamo-nos como Herodes, defendendo que há povos com mais direitos, com mais supremacia sobre os outros, fazendo tábua rasa de que os primeiros que aceitaram Jesus Cristo foram: um branco, representando os europeus, um preto, representando os africanos e um asiático, que representava todos os povos dessa zona do mundo. E não consta que S. José, à entrada da gruta, tivesse pedido o passaporte a nenhum deles; tivesse colocado uma cerca de arame farpado, para dificultar a sua entrada; ou que, sequer, tivesse levantado o cajado, com que tradicionalmente é representado, para os varrer dali para fora, porque eles eram maus, não tinham dignidade, não faziam ali nada e só tinham de ir para a sua terra!
Este é um tema que mexe interiormente comigo, por vários motivos. Primeiro, porque acho impensável que cristãos, de toda a forma e feitio, defendam governantes que separam filhos de pais em plenas fronteiras, como acontece, ainda, nos EUA. Em segundo, porque me interrogo profundamente sobre que sociedade estamos nós a construir, quando, nas notícias, vemos gente a querer entrar no Reino Unido, para se juntar aos seus familiares e permanecem detidos em condições sub-humanas, à entrada da fronteira. Isto, para mim, é inconcebível!
Não é por ter sido vítima de racismo – quer na Europa, quer na Ásia e não fui em África, porque o mais longe onde estive, neste continente, foi a Tanger, mas já fui vítima de racismo por africanos, porque vivi com eles durante três anos da minha vida. Há europeus bons e europeus maus; há africanos bons e africanos maus; há asiáticos bons e asiáticos maus. Mas quando nós aceitamos os outros povos, aqueles que nos pedem auxílio, estamos com medo que eles entrem no nosso país, na nossa cultura para fazer mal: para colocar bombas, realizar ataques terroristas… Eu recordo-me que, no período pós 25 de abril, houve muitos ataques terroristas e não consta que algum fosse feito por islâmicos. Que eu saiba, os responsáveis foram as FP25 de Abril, ou o Exército de Libertação de Portugal (ELP), ou Movimento Democrático de Libertação de Portugal (MDLP), ou outros nomes dessa altura. Também não consta que os que assassinaram o nosso penúltimo Rei, D. Carlos, fossem africanos. Eram portugueses, integrantes da Carbonária. Também sei que, quando via, na minha juventude, os ataques bombistas em Espanha, quem os perpetrava fosse asiático. Interrogava-me sobre donde seriam aqueles povos e fiquei a saber que eram espanhóis do país basco. Nós temos cá disto….
Podem entrar mais pessoas menos boas? Podem. Mas a maioria das vezes, a nossa primeira razão de aceitação destas gentes é porque precisamos deles para fazer os trabalhos que não queremos executar e nem sequer consideramos dignos para nós próprios. E, no entanto, os casos graves de justiça que todos conhecemos em Portugal não têm a ver com as pessoas que vieram do exterior, de países do Medio Oriente, da Ásia, da África, mas com nacionais que estão a ser processados pela Justiça.
Este é um assunto político? É. Mas prefiro ouvir a acusação de que sou um padre político, do que ser, de facto, um padre indiferente aos Direitos Humanos.
A execução desta passagem do Evangelho na nossa vida prática passa por chamar a atenção para o facto que Deus, Jesus Cristo, em quem nós acreditamos, se manifestou, em primeiro lugar, àqueles que eram excluídos pelo povo judeu, ao invés de se manifestar aos grandiosos de entre eles. Os magos não eram judeus, fizerem um esforço para chegar até Jesus Cristo, louvaram-No e quem pertencia ao Seu povo, o que fez?
Nós esquecemo-nos tantas vezes disto: de que, como cristãos, temos de ser mais do que o bom samaritano: temos de ser o próprio Jesus Cristo, que olha para cada um, dando-lhe a dignidade de pessoa, de ser humano, que tem defeitos, é certo, mas que tem qualidades. Que devemos olhar para todos com a capacidade de amar cada um na sua individualidade, oferecendo-lhe a hipótese de existir, de se manifestar diante de nós e ser sinal de Deus para nós. Como, certamente, gostaríamos que fosse feito connosco. Como esperamos que, sempre que recorremos ao Sacramento da Reconciliação, o Pai faça connosco. É isso que nós temos de fazer. Ultrapassar os nossos preconceitos – que todos temos! -; ultrapassar as nossas debilidades; ultrapassar as nossas reservas enquanto povo, pedindo ao Senhor a força e a coragem para aceitarmos TODOS, como Ele aceitou os três magos, símbolo de toda a Humanidade! Deus está em todos e a prova disso é que ele aceitou primeiro os excluídos.
Se não chegarmos a este ponto, de imitar verdadeiramente a Cristo; se nem sequer tivermos o desejo de ter o desejo de aceitar os outros, não sei que caminho é o nosso…