1 – Toda a Sagrada Escritura é uma única Palavra de Deus que interpela a nossa vida e nos chama constantemente à conversão. Ela é, ao mesmo tempo, um único livro, que é Cristo, pois fala de Cristo e nele se realiza; mas é também, do ponto de vista histórico e literário, não um único livro, mas uma colectânea de livros, escritos no decurso de cerca de um milénio. E, na variedade dos textos desta colectânea, podemos mesmo encontrar algumas tensões palpáveis entre eles, porque não sendo escritos na mesma época e sendo o seu estilo muito diverso, não é possível encontrar, nesta panóplia de escritos, uma verdadeira unidade interior. Tal unidade, no entanto, existe, porque é o mesmo Espírito Santo que os inspira e nos faz entender o que Deus quer de nós, por meio dessa grande variedade de estilos e de culturas. Para nós cristãos essa unidade vem muito ao de cima, quando nos colocamos diante de Cristo, o Verbo (a Palavra) feito carne, no qual encontramos a verdadeira chave da leitura do próprio Antigo Testamento. A Escritura é feita de muitas palavras que se resumem numa única palavra, e essa palavra é Jesus, o Verbo feito carne. Com Ele, como chave de leitura de todos os escritos sagrados, descobriremos a unidade interna de toda a Bíblia, como critério decisivo para uma correcta hermenêutica da fé.

2 – Existe uma verdadeira unidade entre os dois Testamentos. Aliás, o próprio Novo Testamento aponta para o Antigo e reconhece-o como verdadeira Palavra de Deus. Por sua vez, o Antigo acena, constantemente para o Messias que há-de vir, no qual se cumprirão todas as Escrituras. Jesus de Nazaré foi judeu e a Terra dos acontecimentos do Antigo Testamento é também a terra-mãe da Igreja, instituída por Cristo.

Com efeito, Cristo morreu, segundo as Escrituras e foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia segundo as Escrituras (Cf. 1Cor.15, 3-5). Há, pois, em Cristo (no Novo testamento) uma continuidade do Antigo, há um cumprimento e uma superação. O mistério pascal de Cristo está plenamente de acordo com as profecias e o aspecto pré-figurativo das Escrituras; mas apresenta também evidentes aspectos de descontinuidade, relativamente a certas instituições do Antigo Testamento. Nós, cristãos, lemos o Antigo Testamento à luz de Cristo morto e ressuscitado. Mas, de modo semelhante, devemos ler o Novo, tendo em conta o Antigo. Como dizia Santo Agostinho: «O Novo Testamento está oculto no Antigo e o Antigo está «patente no Novo». Há, pois, uma íntima relação entre os dois Testamentos, ou como dizia S. Gregório Magno: «aquilo que o Antigo Testamento prometeu, o Novo Testamento fê-lo ver; o que aquele anuncia, de forma oculta, este proclama abertamente como presente. Por isso, o Antigo Testamento é profecia do Novo Testamento; e o melhor comentário do Antigo testamento é o Novo testamento».

Se consideramos como património da Fé cristã o Antigo Testamento, então muito temos de agradecer aos estudiosos dessa primeira parte da Bíblia pelo património que nos legaram. De resto, ainda hoje, nos poderá ser muito útil o contributo judaico na interpretação da sua Bíblia.

D. Manuel Madureira Dias
*Bispo emérito do Algarve

O autor deste texto não escreveu ao abrigo do novo Acordo Ortográfico