Já lá entrei diversas vezes. À porta, a frase que todos os portões de campos de concentração ostentavam, ali permanece: “Arbeit macht frei” – “o trabalho liberta”. De cada vez que atravessei aquele espaço onde impera o silêncio e onde tantas vozes gritam, trouxe comigo uma história nova, uma memória diferente, mas sempre a mesma certeza: a humanidade não pode ser isto e temos de manter viva essa recordação.

A quem passaria pela cabeça destruir Auschwitz, deitar abaixo as paredes dos seus fornos crematórios, arrancar a linha férrea que ali trouxe milhares de pessoas diretamente para a morte, ou para uma “não vida”, onde a fome, a angústia, as experiências médicas, a humilhação mais total e desumana aconteceram? Porque certamente há poucos lugares na terra onde seja tão possível e palpável ver o lado mais negro da humanidade, a nossa capacidade de tornar o próximo apenas e só um ser ao serviço dos nossos caprichos, de escravizar o corpo e a vontade…

Por Auschwitz passam milhares de pessoas (ou passavam, antes da pandemia), que dali levam a memória do lado mais negro da História da Humanidade e, se forem capazes de tal, aprendendo com o que viram, certamente nunca o repetirão e serão capazes de dar nota disso às gerações futuras, aos seus filhos, sobrinhos, netos: que o mal existiu e que não se deve repetir.

Não será essa a leitura que devemos fazer da História? Queremos ser tão modernos, tão “trendy”, tão “justos”, que no processo corremos o risco de revelar precisamente o oposto e, sobretudo, uma enorme, profunda ignorância, uma ignorância que fere aqueles cuja História nos deixou um exemplo positivo e de valor. O tempo histórico, a evolução das mentalidades e dos costumes dão-nos uma perspetiva das coisas que deve ser aplicada no presente e usada para ajudar a construir o futuro, mas não devemos destruir o que já foi feito, apenas e só porque à luz da contemporaneidade não nos parece correto. Tanto haveria, então, para destruir: palácios, como Versailles, construídos com dinheiro público que não serviu para matar à fome ao povo que dela padecia; universidades, onde o saber foi crescendo, mas foi negado, por exemplo, aos que não tinham dinheiro ou às mulheres; instituições políticas nascidas para defender a democracia e a justiça, mas onde sempre houve corrupção e injustiça……………..

A escravatura, que tanta tinta tem feito correr nos últimos dias e tantas estátuas tem permitido que se destruam ou retirem ou entaipem – até a de Churchill, cuja ação foi determinante para que vivamos hoje em paz e em liberdade! – deve ser vista hoje, com os olhos de quem sabe que o mundo e o pensamento antes do século XX não eram iguais aos que agora temos. Ou seja, deve ser vista como algo mau, que aconteceu durante muito tempo e em todos os locais do mundo, porque não foram somente os africanos que a experimentaram, já que nenhum continente estava isento desse conceito e da sua aplicação. E os africanos (que não se identificavam como tal, note-se), eles mesmos escravizavam outros por questões de identidade cultural, por não pertencerem à mesma família, clã, tribo, etnia, língua, religião, país ou Estado. E mutos dos que foram traficados pelos europeus, a partir desse continente, eram comprados a outros africanos que os tinham capturado em consequência de guerras e disputas locais, lideradas pelos grandes reis e rainhas de que alguns falam e que também foram esclavagistas.

A escravatura não foi algo de que nos devamos orgulhar, pelo contrário. Como os campos de concentração, revela o lado mais negro que todos possuímos e que, coletivamente posto em prática, pode trazer ao mundo a maior das dores, das tristezas e das trevas. Devemos afirmar a propósito de ambas: a humanidade não pode ser isto.

Mas uma sociedade que não é capaz de preservar a sua memória, de a entender e interpretar é uma sociedade ignorante, porque incapaz de olhar para si mesma, de reconhecer na História os sinais que deve perpetuar e aqueles que foram revelações do que não devemos ser. Uma sociedade sem memória é uma sociedade sem noção de tempo, de futuro, que vive no agora e só o agora lhe importa. E a Humanidade, para se construir assente na justiça e na solidariedade, tem de perpetuar o futuro e ensinar que o que esteve mal no passado não se deve repetir.

Apagando o que fizemos, não deixamos de ser quem somos interiormente. Pelo contrário: salientamos esse nosso lado irracional e mesquinho, onde a misericórdia e o respeito pelo próximo têm pouco espaço.

Por isso, Auschwitz, como tantas estátuas, devem permanecer. São sinais e memórias. São motivo de aprendizagem. São esse lado do espelho que nos reflete e que não devemos ignorar.