O historiador Marco Sousa Santos explicou no passado dia 10 de setembro que a igreja matriz de São Clemente de Loulé, cujas origens remontam a meados do século XIII, tem por base um edifício do período islâmico que foi posteriormente adaptado a templo cristão.

O autor da palestra “A Matriz de São Clemente de Loulé: Patrimónios e Memória”, integrada no programa cultural da reabertura daquela igreja após cinco anos de reabilitação, lembrou que aquele “já seria um edifício fundamental para essa Loulé do período islâmico”, uma vez que ali estaria sedeada a mesquita.
O historiador referiu que, após a conquista cristã de 1249, o arcebispo do Braga “enviou frades dominicanos para o Algarve para ajudarem nesse processo de adaptação dos edifícios islâmicos”.

Deste modo, Marco Sousa Santos destacou que aquele templo de modelo basilical assenta em paredes ainda da época islâmica, sendo o grosso da estrutura também do período medieval. “O que temos aqui é essencialmente uma igreja gótica”, evidenciou, acrescentando que desse tempo medieval mantém-se a estrutura, as colunas e os capitéis “tipicamente góticos” com “decoração vegetalista estilizada”, todos diferentes uns dos outros. “Como elemento fundamental e interessantíssimo dessa a igreja de São Clemente medieval temos ainda o portal axial, absolutamente gótico”, afirmou, referindo-se ao “portal ogival, também chamado de arco quebrado, com vários colunelos que fazem o seu emolduramento, inserido no chamado gablete”.

“Temos também um elemento simbólico muito importante, representado por uma pequena mísula que está sobre o portal propriamente dito, onde se fez representar a cruz da Ordem de Santiago”, acrescentou, lembrando a propósito que após a conquista o padroado da igreja fica a pertencer ao rei D. Dinis, mas algumas décadas depois o monarca vai entregar esse padroado à Ordem de Santiago. “Poucos anos depois de receber o padroado, a Ordem de Santiago vai negociar com o bispo a cessão de parte desse padroado”, prosseguiu, lembrando que “no final do século XIII, o padroado da igreja de São Clemente de Loulé está dividido”: “a capela-mor era da responsabilidade do padroado e as naves da responsabilidade dos fregueses”.

O palestrante deteve-se então na análise de cada uma das capelas, começando pela mor, decorada com um “retábulo eucarístico com trono piramidal, no topo do qual, em dias festivos, se colocava a custódia com a hóstia consagrada, exposta à adoração dos fregueses”. O trabalho, ajustado em 1730 com um mestre entalhador de Faro, João Amado, é “completamente barroco” como evidenciam as colunas torças revestidas com parras, cachos de uvas e fénixes.

O historiador contou que por debaixo do antigo “revestimento esbranquiçado”, os restauradores encontraram uma “inesperada profusão de cor” composta por “azuis, vermelhos, verdes e amarelos”, contrariando, os retábulos daquela época que, normalmente, são “completamente dourados”. Segundo Marco Santos terá sido “uma solução de recurso” porque “provavelmente não houve dinheiro para pagar” o douramento. “Dourar era revestir a folha de ouro. Às vezes, o preço do processo de dourar, podia ser três ou quatro vezes superior ao da própria execução da obra”, advertiu, considerando que este facto também “diz alguma coisa sobre a sociedade da época e sobre a condição económica dos padroeiros”.
No remate do arco do retábulo, cuja recuperação ainda está em execução, pode ver-se uma cartela com os atributos do orago São Clemente, papa do século I: a tiara papal, as duas chaves cruzadas, também exclusivas do papa, e a âncora, símbolo do martírio do padroeiro.
Na capela colateral do Santíssimo Sacramento, de origem medieval, gótica, denunciada pelo arco ogival, destacou ter sido ali instituída, “no fim do período medieval”, a “primeira confraria que existiu em Loulé, dedicada ao culto de Nossa Senhora, associada ao Hospital dos Pobres”. Marco Sousa Santos explicou que só no século XVI é que é foi fundada a Confraria ou Irmandade do Santíssimo Sacramento. Sobre o retábulo rococó da segunda metade do século XVIII (1769) disse ter “motivos para acreditar que não pertencia originalmente à capela do Santíssimo Sacramento porque os retábulos dessa evocação normalmente eram eucarísticos”. “O que temos aqui parece-me ser o chamado retábulo devocional”, diferenciou.

Sobre a capela de São Brás, construída no final do século XV, sendo “uma das mais antigas da igreja”, afirmou que pertencera a Gonçalo Mendes Careiro, representante de uma “família que atingiu alguma notoriedade em Loulé”. Composta de arco ogival com “motivos caraterísticos do formulário tardo-gótico” que em Portugal é chamado de manuelino, acolhe um retábulo barroco da primeira metade do século XVIII, segundo o historiador, “executado pouco tempo depois do da capela-mor, provavelmente pelo mesmo João amado”. “Mais uma vez não temos a folha de ouro, provavelmente por falta de verba para a colocar, mas temos uma policromia muito interessante que recorre a marmoreado para imitar os veios da pedraria”, realçou.
Para além da imagem de São Brás no nicho central, da primeira metade do século XVIII, “provavelmente da oficina de João Amado”, referiu-se às restantes duas esculturas que “não faziam parte do retábulo original”: uma de São Francisco de Assis, “de finais do século XVIII ou, porventura, já do século XIX”, e um “interessantíssimo e inesperado” Santo Elias, que terá vindo da desaparecida ermida de Nossa Senhora do Carmo, destruída em 1895, quando se construiu a estrada Loulé-Faro.
À capela da Irmandade das Almas, de 1541, cujo acesso era “exclusivo aos oficiais mecânicos, aos lavradores e aos mercadores”, apontou a “inspiração clássica de finais de um Renascimento tardio”. “Nos primeiros anos do século XVII ter-se-á dado início à ornamentação”, contou, abordando os painéis de azulejo, da primeira metade do século XVIII, com padrão repetitivo de motivos florais e geométricos, com apontamentos figurativos que remetem para o título da capela e com representações de São Miguel Arcanjo. Por fim, ao destacar o retábulo tipicamente barroco, ou seja, totalmente dourado, evidenciou a solidez económica dos seus encomendadores.
Marco Sousa Santos referiu-se ainda à “muito interessante” pia de água benta, um exemplar trilobado em pedra mármore que disse ser “quase de certeza contemporâneo e encomenda da Irmandade das Almas”. O historiador abordou também a imagem da Cristo crucificado, junto à pia batismal, que considerou não ser “particularmente interessante do ponto de vista artístico”, mas “porque será uma peça de finais do século XVI”, “uma das mais antigas” no interior da igreja matriz.


O orador abordou ainda a Capela de Nossa Senhora da Consolação para explicar que essa evocação não terá sido a original. A capela quinhentista (1565), de um “manuelino tardio já com apontamentos de renascimento”, terá sido fundada por Fernão Pires Camacho e pela sua mulher, cuja pedra tumular ali está, herdada décadas mais tarde por Isabel de Barros que a trespassado à Confraria dos Escravos. “A partir daqui desaparecem as referências documentais à capela de Nossa Senhora da Conceição e temos referências à capela de Nossa Senhora da Consolação”, contou, referindo ainda os painéis de azulejo da primeira metade do século XVIII, as imagens de São Diogo, franciscano, e de São Crispim.
O investigador prosseguiu para a capela de Nossa Senhora do Carmo, onde destacou o retábulo “de grande qualidade estética e artística”, rematado com cartela com os símbolos do Monte Carmelo, que “seria da ermida de Nossa Senhora do Carmo, destruída no final do século XIX, mas cujas origens remontariam pelo menos ao início do século XVIII”. O historiador referiu-se ainda ao retábulo do final do século XVII de Nossa Senhora do Pilar, imagem que estava na ermida da mesma evocação, e ao retábulo do século XVIII com a imagem de São José. Deste destacou a mesa de altar envidraçada, no interior da qual está uma imagem de roca do XVIII de Nossa Senhora da Boa Morte.
Na capela de Nossa Senhora abordou o retábulo do século XVIII, já do período rococó, com concheados assimétricos e marmoreados, considerando que, “provavelmente, o titular seria o Sagrado Coração de Maria”.

Chegado à capela colateral de Santo António, que disse ali existir “pelo menos desde o século XV”, o especialista destacou que ela “terá estado na origem de um dos cultos mais importantes” da cidade e da região, o culto a Nossa Senhora da Piedade, popularmente evocada como Mãe Soberana. Marco Sousa Santos abordou ainda a imagem de Santo António do século XVIII, a “mísula com meninos” do mesmo século e o frontal do altar, um painel de madeira a simular tecido.
A terminar referiu que a imagem de Nossa Senhora da Graça, junto à capela-mor, seria a imagem da padroeira do convento daquela evocação que “estava colocada no altar da capela-mor da desaparecida igreja de Nossa Senhora da Graça”.

A palestra contou com um apontamento musical em flauta de bisel por Ana Figueiras que interpretou, entre outros, temas de Bach e Handel e com uma explicação da autora do novo altar e do novo ambão da igreja.
No início da palestra, o pároco de Loulé aludiu à importância de momentos como aquele que “também constrói e edifica a comunidade”. O sacerdote lamentou, no entanto, a parca participação dos paroquianos. “Tenho muita pena de que quem vem à missa não se interesse pela cultura da casa que habita. Quando a gente propõe um momento de aprofundamento da fé – que não acontece só na celebração cristã – é triste que a comunidade se ausente”, criticou.