Padre Miguel Neto

O documento essencial sobre a vida política dos cristãos é claro ao afirmar que «todos os cristãos tenham consciência da sua vocação especial e própria na comunidade política; por ela são obrigados a dar exemplo de sentida responsabilidade e dedicação pelo bem comum, de maneira a mostrarem também com factos como se harmonizam a autoridade e a liberdade, a iniciativa pessoal e a solidariedade do inteiro corpo social, a oportuna unidade com a proveitosa diversidade» (G.S.751).

A Gaudium et Spes, saída do Concilio Vaticano II, faz-nos recuar aos tempos em que mundo vivia o bipolarismo da Guerra Fria. Lembra-nos os constantes apelos dos Santos Padres, através do magistério, ao bem-comum, à paz, à aceitação de todos. Isso num mundo que vivia ainda o rescaldo de duas guerras globais e fratricidas e onde havia um grupo de países que, através do comunismo, criavam uma rede de regimes opressores e violadores dos direitos humanos e do bem-comum, esse conceito que é tão caro à Igreja e que foi definido na Encíclica Pacem in Terris (1963), do Papa João XXIII, da seguinte forma «O bem-comum consiste no conjunto de todas as condições de vida social que favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana e sua sociedade» (P. T. 58).

Apesar de os tempos mudarem, a posição que um cristão deve ter diante da política mantém-se. Deve ter sempre em mente os benefícios que são compartilhados por todos os membros (ou a maioria) de uma dada comunidade, olhando de forma muito particular para o modo como o próprio conceito de bem é definido e não votar em forças partidárias que defendam princípios contrários à fé católica. Mas isso torna-se cada vez mais difícil, para não dizer impossível.

Nestes tempos em que o extremismo político já está aí, como a força da acne na pele de um adolescente, torna-se tarefa essencial, mas difícil e geradora de conflitos internos, cada um de nós tomar opções de acordo com a fé que professamos. Senão vejam alguns exemplos: Optamos por forças partidárias que são a favor do aborto, mas defendem a integração dos refugiados? Ou votamos em forças partidárias que sendo contra o aborto, são contra a imigração e defendem a construção de muros físicos e fronteiriços, porque não querem um desvirtuamento das raças europeias e são contra a União Europeia? É que a mesma Gaudium et Spes diz que «os cidadãos cultivem com magnanimidade e lealdade o amor da pátria, mas sem estreiteza de espírito, de maneira que, ao mesmo tempo, tenham sempre presente o bem de toda a família humana, que resulta das várias ligações entre as raças, povos e nações (G.S. 75)».

Mas podemos colocar mais questões: votamos em partidos que têm uma nítida a agenda favorável à ideologia de género, ou votamos em partidos (como é o caso do Vox em Espanha) que afirmam ser apoiantes da discriminação e contra dos direitos das mulheres e esquecemos os valores profundamente cristãos da tolerância, da misericórdia, da caridade?

Neste circo de feras em que está transformada a arena política mundial, sobra mais espaço para as interrogações nada subtis do que para as certezas, mas também renasce, com cada vez mais força, o desafio de nos interrogarmos, de conhecermos o verdadeiro significado do que é possuir uma identidade cristã realmente assente nos valores presentes e inscritos na nossa fonte maior de sabedoria, Jesus Cristo. Qual é o nosso papel? Para onde queremos ir? Vamos deixar que outros decidam por nós e, pior ainda, definam aos olhos do mundo aquilo que nós somos, para nos vermos retratados como versões pop de um qualquer nacionalcatolicismo? É isso que nos define?

A democracia cristã – como todas as ideologias – já teve melhores dias e ideias mais de acordo com o Evangelho. Assim torna-se difícil votar. Mas é a essa reflexão que somos chamados, porque isso também é ser verdadeiramente cristão.

1Promulgada pelo Papa Paulo VI, no dia 7 de dezembro de 1965, na 9ª sessão solene do Concílio Vaticano II, a Gaudium et Spes (“Alegria e Esperança” em latim) sobre a Igreja no mundo contemporâneo é uma constituição pastoral, que aborda fundamentalmente das relações entre a Igreja Católica e o mundo onde ela está e atua.