Padre Miguel Neto

Em tempos que já lá vão, o casamento não era encarado como uma união assente no amor e na vontade dos esposos, sobretudo nas classes mais abastadas. Todos sabemos isso. Casar era uma necessidade, diz-se no primeiro volume de Casamentos da Família Real Portuguesa1 , quer fosse «para assegurar continuidade dinástica», quer «para estabelecer novas alianças ou reforçar as já existentes, promover a paz ou ainda obter apoios para lançar ou prosseguir guerras». Ou seja, o amor e os sentimentos não interessavam muito.

Haver, aliás, noivos e noivas crianças era situação normal; noivos forçados a casar, também, até porque quem decidia as uniões eram os pais, lá está, por questões de interesse estratégico-político-financeiro. Os dotes e as compensações eram normais. Por exemplo: sabiam que era habitual o marido transferir para a mulher algum património, para que, no caso de ela enviuvar cedo, tivesse a sua situação garantida? E que era costume pagar o “dom da manhã” (também chamado “compra do corpo”), que não era, nada mais, nada menos, que uma compensação pela perda da virgindade, feita na manhã seguinte à noite de núpcias pelo do noivo à noiva. Isto para não falar de bens imobiliários, terras, castelos, cidades e dinheiro que era costume oferecer como parte dos acordos de casamento.

E havia casamenteiros e casamenteiras profissionais, que ganhavam dinheiro tratando de arranjar parceiro/a a quem lhes pedisse para tal.

Ora, este tempo passou e bem, na minha modesta opinião de celibatário, mas pessoa que abençoa muitos casamentos e que acompanha muitos noivos. Até porque, para a Igreja, o casamento é muito mais do que um acordo, é o Sacramento do Matrimónio, que assenta na vontade, livre e esclarecida, dos esposos de se darem um ao outro, mútua e definitivamente, com o fim de viverem uma aliança de amor fiel e fecundo2. Nele, os esposos recebem uma missão e a graça matrimoniais: a de serem o sinal do próprio amor de Deus, do amor de Cristo pela sua esposa, a Igreja, pois espera-se que os esposos recebam a graça de se amarem com o amor com que Cristo amou a sua Igreja, santificando-os e perfeiçoando-os na sua caminhada conjunta.

Hoje, todos esperamos que o casamento seja um ato de amor, refletido e absolutamente sincero, vivido em liberdade. E com consciência, consciência do valor do outro, consciência de que o amor é essencialmente viver para fazer quem se ama feliz, consciência plena das dificuldades e das alegrias que terão de ser partilhadas, num mundo cada vez mais marcado pelo facilitismo e pelo descartável.

Pois é neste contexto que parece surgir uma nova modalidade de “casamento”, uma proposta que já acontece em vários países do mundo (Austrália, Nova Zelândia, Espanha, Reino Unido) e que a SIC traz para o nosso país com o programa de reality TV “Casados à Primeira Vista”.

Nesta produção televisiva, descrita pela estação SIC como «uma nova experiência social que promete mudar a forma como todos nós olhamos para o amor», vários candidatos são selecionados para casar com desconhecidos por um grupo de “especialistas” em relacionamentos (quatro ao todo: dois coaches, um psicólogo/sexólogo e um neuropsicólogo), sendo cada um previamente avaliado. Depois, casa, sem nunca ter visto ou falado com a pessoa escolhida para si por esses avaliadores. Ao longo de várias semanas vivem em conjunto, sendo-lhes propostos vários desafios que têm como objetivo fazê-los perceber se são compatíveis e se desejam ou não continuar a viver juntos: conviver com as suas famílias, partilhar tarefas, descobrir os espaços de cada um e, até, a intimidade física.

Pelo que pude perceber, há casais que permanecem juntos e têm relacionamentos felizes, com filhos e há casais que se separam imediatamente no decurso do programa e outros que no final do programa até decidem ficar juntos, mas cujas relações terminam.

O que a mim me parece estranho e inaceitável é que regressemos à lógica de outros tempos, à lógica dos “casamenteiros”, ainda que estes noivos, ao contrário dos noivos medievos, tenham maior liberdade para abandonar os relacionamentos e não tenham objetivos estratégico-político-financeiros. Fazer espetáculo de tudo, inclusive daquilo que há de mais profundo no ser humano, que é o amor – seja ele de que natureza for – é desprovido de sentido e de finalidade. Até porque, mais uma vez, o que motiva quem promove o programa são as audiências e, consequentemente, o lucro e não as pessoas. Mais para mais, com uma capa de “experiência social”, pseudocientífica…

O que motiva os casais que participam é que me baralha… Estaremos a viver tempos tão vazios que as pessoas não consigam estabelecer relações em ambientes normais e familiares, que se conheçam e descubram se na verdade têm projetos de vida comum, que desenvolvam sentimentos de tal profundidade uns pelos outros que os levem a desejar de todos o coração, ser fiéis um ao outro, amar-se e respeitar-se, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, por todos os dias das suas vidas?!…. Não acredito!

Como disse, caso muitas pessoas e vejo neles sinceridade. Vejo esperança. Vejo que o mundo pode ser um lugar bonito e, sobretudo, acredito que quando há amor, amor de verdade, Deus está sempre presente e a tornar santo quem partilha esse sentimento. A mim, tal experiência não me fez mudar a forma como olho para o amor.

1Esta obra é editada pelo Círculo de Leitores, sendo coordenada pelas historiadoras Ana Maria S. A. Rodrigues, Manuela Santos Silva e Ana Leal de Faria e dando nota da investigação realizada por uma equipa de 20 historiadores.
2Cf. Catecismo da Igreja Católica, Artigo 7 – 1601-1666, http://www.vatican.va/archive/cathechism_po/index_new/p2s2cap3_1533-1666_po.html, consultado a 28/10/2018) 1662)