Naquela tarde chuvosa de julho de 2009, depois de um dia de aulas, era a primeira de muitas vezes que iria estar no British Museum. Estava nervoso. Uma coisa é saber tudo o que ali se encontra através da Wikipédia; outra, é poder contactar com obras de arte e peças históricas, que só tinha tido a possibilidade de ver nas fotos dos livros de História ou nos filmes e documentários. Foi com a incredulidade de quem não admite que está a viver esse momento, que olhei a Pedra de Roseta, ou vários exemplares de sarcófagos egípcios, ou que me senti verdadeiramente fascinado diante de Mármores de Elgin, retirados do Pártenon no séc. XIX, ou de um Hoa Hakananai’a, que é um moai da Ilha de Páscoa e que se encontra exposto no museu londrino.

Como é que estas e outras obras foram ali ter? Não há como esconder que a Inglaterra, a França, a Holanda, a Espanha e a Alemanha têm nos seus museus obras oriundas dos mais variados lugares do mundo, em grande parte fruto das famosas viagens que corsários dos séculos XVIII e XIX empreenderam por esse mundo fora.

Mas, quando reflito sobre esta questão, não consigo deixar de pensar: ainda bem que estão nestes e noutros museus espalhados pelo planeta. Infelizmente, a cabeça da maior estátua do buda existente no mundo, esculpida há mais de 1500 anos em Bamiyan, no centro do Afeganistão, não estava em nenhum museu e os “talibans” puderam destruí-la por completo em 2001, depois de terem já arruinado outras estátuas alusivas à religião budista, também em Bamiyan, no âmbito do que consideravam ser a sua campanha de erradicação da estatuária pré-islâmica. Infelizmente, tal situação repetiu-se quando o Estado Islâmico arrasou uma coleção de estátuas e esculturas inestimáveis no norte do Iraque, que remontam à antiga era assíria, algumas deles identificados como antiguidades do século 7 a.C., devastando-as com marretas ou picaretas, porque se considerou tratar-se de símbolos de idolatria.

A história não muda, ainda que a queiramos apagar e corrigir. Ela acontece, ao sabor daquilo que são as correntes de pensamento, as formas de viver e as convicções de cada tempo e, ainda que saber que a Humanidade é capaz de muitas atrocidades nos entristeça e nos deva obrigar a refletir, não podemos passar uma borracha por cima do passado e considerar que, devolvendo o património existente nos museus, tudo fica bem. Por isso, creio que deve existir uma forte oposição destas instituições à repatriação de objetos de importância cultural internacional, como a Pedra de Roseta ou os do Pártenon.

Estes objetos foram adquiridos em épocas anteriores, marcadas por essa distintas visões do mundo e da História, que refletem diferentes sensibilidades e valores relativamente ao mundo contemporâneo, mas é preciso não esquecer que os museus servem, não apenas os cidadãos de uma nação, mas também as pessoas de todo o mundo, que não tendo muitas vezes a possibilidade de se deslocarem a locais distantes, encontram nestes espaços que lhes são mais próximos, a possibilidade de aprender e de conhecer o que de outro modo nunca fariam. Servem para as estudar e para produzir saber, que deve ser partilhado entre todos, para que o conhecimento gere mais conhecimento e melhores sociedades. Isto já para não questionar a capacidade de muitos países de salvaguardar corretamente este património, já que em termos financeiros, de gestão política e afins, deixam muitas vezes dúvidas sobre a sua real possibilidade de garantir essa conservação e usufruto pelos locais. Sei que esta discussão é controversa e que gera opiniões apaixonadas e que diversos estados em todo o mundo (de que talvez o Egipto seja o mais conhecido) têm reclamado a devolução das peças que foram retiradas dos seus territórios noutras épocas.

Esta discussão chegou nestes dias a Portugal e, lamentavelmente, conduziu-nos para o tema do colonialismo, que é uma ferida muito perigosa de abrir e curar e que fere muitos, de um lado e do outro desse nosso passado.

Não pretendo fazer a apologia de que o colonialismo foi, em tese, uma coisa boa. Não foi. Todos os que nascemos neste tempo acreditamos que a liberdade de escolha e decisão são valores inalienáveis do ser humano e que devem ser defendidos e preservados. Mas aconteceu e, olhando para o passado com a perspetiva que já mencionei de que o tempo não é o mesmo, nem as mentalidades, também há que considerar que a presença dos portugueses nos vários países do mundo não trouxe somente coisas más e que é importante, para os portugueses do presente e do futuro poderem saber o que aconteceu e encontrarem, nos seus museus, as provas da passagem por esses locais, a sua história e património.

Mas quero refletir sobre o assunto, pois se há quem entenda que é injustiçado pela ação dos portugueses que viveram em Africa, o que pensam aqueles que de lá foram forçados a sair, aquando da realização atabalhoada e tosca dos processos de descolonização? Não terão também direito a voz? Há muitas pessoas, no nosso país, muitas vezes tratadas com desrespeito e desdém, que nasceram nas ex-colónias e pelo facto de serem brancos, tiveram de abandonar tudo o que ali haviam construído. Viram-se, de repente, sem as suas casas, contruídas e pagas com o fruto do seu trabalho, ficando sem nada e tendo de ir para um país que muitos nem sequer conheciam e, ainda, sendo olhados de lado por outros, cuja única coisa em comum que tinham era a língua e a cor da pele. Estas pessoas eram todas más, esclavagistas, colonialistas empedernidos, sem respeito pelo outro, ou foram, na sua maioria, pessoas trabalhadoras, que construíram empresas, geraram riqueza e empregos, contribuíram para a formação e crescimento da população?… Quando os portugueses deixaram a ex-colónias, deixaram só miséria, ou países preparados para desenvolverem o seu total potencial? E não vou falar do que acontece hoje, nem das Isabéis dos Santos desta vida, pois isso então daria pano para mangas, sobre o respeito que se tem pelas pessoas e o que se pretende criar nestes países…

Não é a cor de pele que dá identidade a uma pessoa, é o sítio onde se nasce e o lugar onde se habita, a cultura que se absorve, mas sobretudo, os valores em que se acredita e que se põem em prática. E se anuirmos isso, saberemos que no processo de descolonização muitos portugueses foram verdadeiramente espoliados da sua identidade. E não vamos falar de bens materiais, porque a haver restituição para um lado, não deverá haver para o outro? Porque não restituir as propriedades, as casas, os bens que foram deixados para trás e que foram construídos por gente que trabalhou para tal e que se sacrificou e empenhou tudo o que tinha?

Esta ferida não se cura com debates políticos, nem com o pedido de devolução de peças de arte, que estando onde estão, estão acessíveis a todos e preservadas.

Esta ferida está longe de ser entendida na sua totalidade e complexidade e falar dela levianamente, como se tem feito nos últimos dias, é escamotear muito do que deverá ter peso na sua análise, pondo de parte pontos de vista que também deverão ser tidos em consideração e gentes que foram tão feridas como os que levantaram o tema das devoluções.

Esta ferida tem de ser pensada recorrendo ao bom senso e ao verdadeiro sentido da História.