Eram os idos de 1956. Muitos portugueses encontravam na ideia de partirem para França, o seu sonho de um futuro melhor, um futuro em que fugiriam à miséria, à degradação e exploração e, mais tarde, alguns pretenderam escapar à guerra.

Mas chegar a França e encontrar alojamento, trabalho e condições dignas de vida nem sempre foi fácil. Champigny-sur-Marne tonar-se-ia um testemunho penoso desse tempo de dificuldades: o famoso “bidonville” – bairro de lata – albergaria nos seus quase 45 hectares (45 campos de futebol), à falta de meios postos em prática pela França para os alojar, entre 12.000 e 15.000 portugueses. Só entre 1972-73 viria a ser destruído, mas é um retrato a não esquecer e que devemos sublinhar por estes dias.

Os portugueses foram e são um povo de emigrantes, que na França, nos EUA, no Canadá, na Inglaterra, no Brasil, na Venezuela e em tantos outros países (incluindo, se quiserem, as ex-colónias africanas), buscaram resposta para os seus problemas e dificuldades. Continuamos a sê-lo e, se hoje temos a possibilidade de encontrar empregos mais qualificados, tempos houve em que fazíamos a limpeza de WC’s, de prédios e escritórios, ajudávamos no mais árduo trabalho agrícola, ou industrial, sempre com condições muito duras e precárias e passando por momentos de discriminação e racismo.

Saber que há portugueses que: primeiro, não são capazes de sentir um pingo de empatia para com o seu semelhante, sobretudo se ele tem outra cor, fala outra língua e é de outra cultura; segundo, não revelam humanidade de espécie alguma; e, terceiro, ignoram este passado que se calhar tocou aos seus avós e pais, é de uma enorme e triste ironia.

Sou olhanense, como sabem. Sempre me orgulhei das minhas origens e continuo a senti-lo, contando episódios em que a minha mãe, que sempre foi Vicentina, entrava sem medo e era acolhida com respeito e simpatia nos bairros mais problemáticos da cidade. Sempre vi na minha gente uma capacidade para aceitar a diferença, própria das gentes do mar, das gentes que estão sempre a partir e a chegar e que, nos seus percursos, conhecem e fazem dentro de si mundo.

Os episódios dos últimos dias, que envolveram o espancamento de um jovem nepalês e outros cidadãos, entristecem-me profundamente e fazem-me pensar em tantas coisas: o que motiva este tipo de ataques a pessoas pobres e que só procuram uma melhor condição de vida? O que leva à exploração da vulnerabilidade? Que educação e influências tiveram estes jovens, capazes de espancar, roubar e repetir o ato, sempre dirigido a emigrantes?

Escutamos discursos acesos e extremistas, vindos de muitas origens – políticas, religiosas, de movimentos mais ou menos organizados… Discursos que não têm substância e que só nos envergonham. Lamentamos, vemos os dirigentes máximos do país a lamentar, mas de que servem os lamentos, quando não há medidas eficientes e eficazes de combate a estes atos? E não me refiro somente às medidas repressivas, exercidas diretamente sobre quem os pratica, mas às medidas preventivas, que deveriam responsabilizar e levar à barra dos tribunais aqueles que propagam ideias xenófobas, racistas, homofóbicas, discriminatórias de qualquer tipo e dirigidas a qualquer ser humano.

Regresso, quando penso nisto, ao episódio do Bom Samaritano (Lucas 10:25–37), mencionado no Evangelho, que o Papa Francisco considerou «o modelo de como um cristão deve agir» (Angelus, 14/07/2019). Dizia Francisco, na Encíclica Fratelli Tutti (p.64): «Habituamo-nos a olhar para o outro lado, passar à margem, ignorar as situações até elas nos caírem diretamente em cima». Mas a verdade é que «fomos criados para a plenitude, que só se alcança no amor. Viver indiferentes à dor não é uma opção possível; não podemos deixar ninguém caído “nas margens da vida”. Isto deve indignar-nos de tal maneira que nos faça descer da nossa serenidade alterando-nos com o sofrimento humano. Isto é dignidade» (F. T., p. 68).

Que seres humanos somos? De que modo queremos ser? E, sobretudo, que cristãos somos, quando nos juntamos a estes populismos fáceis, que ignoram que «Toda a Lei se cumpre plenamente nesta única palavra: ama o teu próximo como a ti mesmo» (Gl 5, 14)?

Não tenho respostas finais, a não ser as que a Fé, que vive no meu coração, me dita. E vergonha, muita vergonha, porque não queria que em lugar nenhum do mundo alguém fosse violentado por ser diferente. Menos, ainda, na minha terra. E tristeza, porque a memória não perdurou e nada aprendemos, dos tempos dos “bidonvilles”, tempos amargos em que éramos nós os mais fracos e outros os agressores.