Padre Miguel Neto

Da minha janela vejo o mar. Não o mar calmo e azul do Algarve, o mar que aprendi a amar e ao qual desejo regressar sempre, mas o mar agreste do norte, aquele que separa a Escócia da Irlanda, dois países que têm muito mais em comum do que a maioria das pessoas sabe, já que partilham uma origem, antepassados, um espírito guerreiro e amante da liberdade, que os tornou tantas vezes combativos e agrestes.

Este mar tão intenso e tão absolutamente profundo é a maior riqueza de quem aqui vive: garante alimento, garante o combustível, garante a circulação de pessoas e bens. É uma verdadeira autoestrada desta parte do mundo, onde se cruzam nativos de pesca, navios mercantes, petroleiros e ferryboats, que transportam veículos e pessoas.

Podia ser, o mar a que me refiro e para o qual olho, um obstáculo a tudo, mas não o sinto assim. Conversando com os habitantes locais percebo o seu intenso amor por este oceano, que traz vagas imensas às vezes, mas que atrai a fauna mais espetacular em diversas alturas do ano: focas, leões marinhos, pássaros de muitas espécies que aqui nidificam. Nasceram perto dele e perto dele querem ficar, ainda que por vezes viagem para longe em busca de oportunidades diferentes. Regressam e constroem negócios: empresas de pesca (aqui, por exemplo, produzem-se muitos mexilhões), empresas de laticínios, empresas turísticas.

Procuram-se e encontram-se. Olham para si e para a natureza que os envolve e são simultaneamente forças criadoras e criativas e de destruição e transformação. Vivem longe, mas não isolados. O mar que aparentemente os afasta do mundo, é o mar que os leva para qualquer lado onde desejam ir. Esse mar que é uma corrente inspiradora infinita e que serve a mão de Deus no trabalho de unir e de estabelecer sinergias e pontes, de criar verdadeiramente humanidade. Esse mar que é sinal Dele e marca em todos os que nele vêem espelhada a sua condição humana.

Olhando para o oceano espumoso e livre e recordando os que nestes dias têm partilhado comigo o seu tempo, as conversas e os sentimentos vejo como afinal estamos tão próximos: navegantes de facto, como reza a história de Portugal e navegantes da vida, procuramos respostas nos outros. Buscamos em quem passa pela nossa existência confirmação de que podemos ser felizes e fazer os outros felizes. Como barcos que se cruzam, transportamos dentro de nós tudo e nada e esperamos que aportem em nossos corações mercadorias felizes e positivas trazidas por aqueles que nos importam. E como podemos fazer isso se não tivermos a noção de que o mar é um espaço de liberdade, um espaço de respeito e de transformação?

Este mar que aqui permanece e que inspirará muitos outros melhores que eu trouxe-me hoje a casa, porque só lá chego quando consigo abrir o meu coração e sentir que nada vale a pena se não for capaz de vencer as vagas e abraçar terra, abraçar quem me espera e levar toda a vontade de amar, amar de verdade, não como nos romances de cordel, amar com o sentido que Deus nos quis incutir e desafiar a atingir. E hoje fiquei mais feliz e mais perto dos que tenho a meu cuidado e me têm a mim a seu.