
O nascimento de Jesus Cristo constitui um tema central na História da Arte. Desde o século IV que, recorrendo a uma diversidade de suportes pictóricos e escultóricos, inúmeros artistas têm representado as narrativas bíblicas da natividade, em particular os Evangelhos de São Lucas e São Mateus, coloridos pela influência de alguns textos apócrifos como o proto-evangelho de Tiago.
Capital do Algarve desde 1540, e sede de Bispado desde 1577, Faro assumiu ao longo dos séculos enorme importância regional, aqui residindo uma significativa clientela artística, graças ao estabelecimento de diversas casas religiosas; como os Conventos de Nossa Senhora da Assunção, de São Francisco e de Santo António dos Capuchos, e à presença de sucessivos prelados e alguma nobreza regional que acabaria por se unir à uma pequena burguesia endinheirada.
Seria inevitável que as coleções de pintura antiga remanescentes na capital algarvia apresentassem um variado conjunto de pinturas de temática sacra, entre as quais se encontram algumas representações da natividade. Entre estas, merecem destaque quatro telas que, pela sua qualidade artística, representam uma parte significativa do património cultural da cidade.
Na capela de São Miguel da igreja da Sé, encontramos duas Adorações, atribuídas à oficina de Bento Coelho da Silveira (pintor ativo entre 1648 e 1708), um artista prolífico que, na opinião de Luís de Moura Sobral, constitui o verdadeiro paradigma oficial da arte da pintura portuguesa da segunda metade do século XVII1 , tendo sido um dos grandes responsáveis pelo enriquecimento da paleta cromática que se verificou na pintura portuguesa deste período.
Recentemente exibida na exposição temporária “Pinturas do Barroco em Sevilha e no Algarve” (organizada pelo Museu Municipal de Faro), a “Adoração dos Magos” da igreja da Sé, caracteriza-se pelo predomínio da pincelada sobre o desenho, revelando um estilo expressivo de cores vibrantes e uma luz quente que banha a cena. Ao centro, o pintor representa a Virgem, que apresenta o Menino à adoração do Rei Mago Gaspar, ficando à sua direita Belchior e Baltasar. Esta tela forma um díptico com uma “Adoração dos Pastores” colocada na mesma capela. Na opinião de Magno Moraes Mello, “esta pintura revela grande habilidade na composição do desenho e na organização do espaço, dando prioridade ao primeiro plano com uma luminosidade mais acentuada no centro figurativo”2, nomeadamente na figura do Menino Jesus que, sob o olhar enternecido da Virgem, é adorado pelos pastores. Ambas as pinturas adotam a fórmula invariavelmente seguida pelas “Adorações” de Bento Coelho da Silveira e apresentam semelhanças com uma outra “Adoração dos Magos” que se encontra no Seminário Episcopal de Faro, igualmente atribuída a este pintor.
Da primeira metade do século XVIII é o díptico do Museu Municipal de Faro, constituído por uma “Adoração dos Pastores” e uma “Adoração dos Magos”, atualmente em exposição na sala de pintura antiga. Trata-se de duas telas de grandes dimensões que se caracterizam por um enorme sentido pictural, apresentando cores vibrantes e pincelada forte. O artista define como ponto central a figura do Menino Jesus ao colo de Maria. Na adoração dos Magos, São José surge à direita de Maria e os reis Magos à sua esquerda, mas na Adoração dos pastores S. José é relegado para segundo plano, surgindo na sua posição um velho pastor em pose de adoração ao Menino.
O autor destas pinturas não foi identificado, mas as duas “Adorações” do Museu Municipal revelam a enorme influência exercida em Portugal pela escola romana do barroco italiano (em particular durante primeira metade do século XVIII), graças à encomenda artística de Dom João V e ao empenho do monarca na criação da academia portuguesa de pintura em Roma, pela qual passaram artistas como Inácio de Oliveira Bernardes e Vieira Lusitano. Na verdade, estes e outros pintores portugueses terão tido ampla oportunidade para estudar o trabalho de mestres italianos como Agostino Massuci, a quem D. João V encomendou diversas obras, entre as quais uma “Sagrada Família”, executada para a capela do mesmo nome no Palácio-Convento de Mafra, a qual, segundo a tradição, foi a pintura favorita do monarca português.
Esta época natalícia constitui assim uma boa oportunidade para revisitar a igreja da Sé e o Museu Municipal de Faro, e apreciar o modo inspirado com que diversos artistas têm ao longo dos séculos representado o Nascimento do Salvador do Mundo.
1 Pinturas do Barroco em Sevilha e no Algarve: contactos, coincidências e discordâncias (Catálogo). Edição do Museu Municipal Faro, 2017, p. 36.
2 Inventário da Pintura do Concelho de Faro. Edição da CMF, 2000, pp. 126-127.