– chamemos-lhe João…
Foi com esta frase e a tapar a boca com a mão, como se faz nas expressões de muito espanto, que me saudou assim que entrei na carrinha. Sim, o pai tinha beijado a mãe e ele tinha visto. Estava mesmo feliz, apesar da pouca maturidade, acompanhada do acentuadíssimo défice cognitivo. Mas este não contou para nada na ocasião. A alegria era genuína, estas coisas da alegria não se resumem só aos cognitivamente capazes, era o que faltava, ainda é para todos e de todos, graças a Deus e aquilo a que assistira era novidade para ele, isso percebia-se bem. Eu e os meus colegas rimo-nos, ainda meti conversa e tentei ver a sequência do ocorrido, a forma como descrevia, ou não, o episódio, a articulação do discurso e o “que tinha visto, afinal”, mas não adiantava. Repetia a frase em loop e ria, ria muito.
Apesar de não conhecer a fundo o miúdo, sei que a família é desestruturada, passam muitas dificuldades de toda a ordem e a escola (ainda) é o único cenário de alguma estabilidade em que se movimenta. Sei também que é um caso em que as fragilidades cognitivas se vão repetindo de geração em geração, à boleia e acompanhadas de tantas outras “misérias” que se lhes colam. Mas com aquela frase do miúdo. lembrei-me de uma amiga, próxima, que me disse há tempos assim: -Muitos de nós casais (referia-se a pais e mães, maridos/companheiros e mulheres/companheiras) não nos beijamos à frente dos miúdos, os filhos não estão habituados a gestos destes, de ternura, carinho, dos Pais entre si, já viste?”
Percebi o que ela quis dizer. Às vezes há um certo pudor do casal, em ter demonstrações de carinho à frente dos filhos; às vezes não há e isso é para certas duplas, mais natural. Está tudo certo. Cada dupla tem a sua idiossincrasia.
Talvez a sua forma particular de ser e estar, de se portar em casal que a faça dizer aquilo. Sei também que a ternura, o afeto, o carinho e o amor que os Pais sentem um pelo outro muitas vezes não se vê ou mede pelo número de beijos que dão à frente dos filhos. Tudo isso passa pelos poros, pelo olhar, pelo tom com que se fala, trata, lida, toca. Eu sei, eu sei isso tudo. Mas aquela frase do João, com os olhinhos a brilhar de riso e com a mão gorducha a tapar a boca de espanto, desarmou-me. E mostrou-me que não sendo tudo e podendo ser nada, um beijo pode também ser tanto.