O ansiado desconfinamento está a chegar. Será feito por fases, como sempre achei que devia ser, com cautela, e com o governo atento aos impactos sanitários deste processo. Espero um governo que tem um modelo de desconfinamento com princípio, meio, e fim, que tem um plano B, C ou D, caso a situação de contágio atinja números mais elevados do que o expectável. Rogo para que existam estes planos, para que não suceda ser necessário inverter o rumo das decisões já tomadas, e isso aconteça irracionalmente, porque nem plano A existia devidamente preparado. Felizmente, não me parece ser o caso. Aguardemos.
No próximo dia 4 de Maio surgirá o primeiro sinal. Passado o estado de emergência, é permitida a reabertura do pequeno comércio – centros de estética, cabeleireiros, lojas de tatuagens, livrarias e lojas de roupa – desde que possuam menos de 200 metros quadrados. Os clientes serão obrigados a usar máscara, e os funcionários, luvas e viseira.
A imagem que temos de alguém num cabeleireiro a consultar revistas de há um par de meses, atiradas em cima de uma mesa, é agora uma quimera. Permanecerá no nosso imaginário para sabermos que já fomos mais livres. Até a revista ou o jornal que já tinhamos folheado na última passagem por um desses locais, deixará saudades, porque nos lembrará que somos seres coagidos por um maldito vírus. Até mesmo a espera, e o tradicional teatro de senhas, de algum “chico-esperto” que chega mais tarde, e que tenta ludibriar os restantes, com grandes dissertações, porque diz estar à espera de ser atendido primeiro que todos os outros, até mesmo isso, que nos provoca grande incómodo e riso, ficará apenas na nossa memória, porque tudo funcionará por marcação prévia, e em determinados locais, à porta fechada, não havendo filas de espera.
A 18 de Maio surgirá a segunda fase de abertura. Será a vez das lojas de maior dimensão, incluindo restaurantes, museus e creches, obedecendo a regras de lotação, definidas de acordo com cada espaço.
No dia 1 de Junho parece chegar a terceira fase, contemplando a abertura dos centros comerciais, cinemas e teatros, com apertadas medidas de controlo no que diz respeito à sua lotação.
Perante este panorama, absolutamente inevitável, faço as seguintes perguntas.
1. Teremos acesso às máscaras necessárias para fazermos a nossa vida com a naturalidade desejável, sem necessitarmos de percorrer as farmácias todas do Concelho onde vivemos numa autêntica missão de contra-relógio, porque a cada minuto passado, há profissionais de açambarcamento a limparem todas as reservas?
2. Haverá um controlo honesto dos preços de todos os outros produtos de desinfecção e de protecção, ou há uma descida do IVA para aumentar ainda mais o lucro de quem vende?
3. Sairemos à rua, devidamente protegidos, com vontade de festejar o fim deste encarceramento, ou nem isso acontecerá porque teremos medo de sair, vendo no outro uma ameaça, evitando até o simples aceno ou cumprimento verbal?
4. Existirá coragem para nos sentarmos num restaurante com cenário hospitalar, em que todos os presentes estarão de máscara, excepto no acto de comer? Comeremos o quanto antes para fugirmos de uma possível contaminação, ou desfrutaremos da refeição como já era hábito?
5. Nos locais públicos em que tenhamos de utilizar material partilhado, como por exemplo, cadeiras, mesas, talheres, louças, canetas, terminais multibanco, sentir-nos-emos confortáveis, se antes, não tivermos observado alguém a desinfectar tudo?
6. Mesmo com a devida distância de segurança, estaremos confortáveis em salas de cinema e/ou teatros, com a possibilidade de outras pessoas tossirem e/ou espirrarem, algo tão natural da nossa espécie, mas tão “ameaçador” nos últimos meses?
7. Abraçaremos como sempre os nossos familiares e amigos, mesmo que cada um tenha a sua máscara, ou o convite contínuo para mantermos o distanciamento, ao longo de dois meses, refreou-nos o desejo de sentirmos o coração do outro junto ao nosso?
8. Após este longo tempo, em que uma hora parece um dia, e um dia parece um mês, a mudança ocorrida nas nossas vidas terá um saldo positivo? Crescemos enquanto seres humanos, capazes de nos abrirmos aos outros e às suas necessidades, ou fechámo-nos ainda mais, aumentando o nosso egoísmo, tornando-nos frios e insensíveis, vendo o outro como ameaça, em vez de o olhar como oportunidade para acolher, ajudar e amar? No meio da minha liberdade condicionada, aprendi a ser ainda mais livre, ou tornei-me prisioneiro de mim e dos meus medos?
Creio que os próximos tempos serão cruciais nas respostas a estas, e a muitas outras perguntas. A sociedade já mudou. Não nos iludamos.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia