Nunca deixou de me interpelar, que a frase mais bela e profunda sobre as relações contruídas entre cristãos pudesse ter sido escrita por um pagão a outro pagão, um tal Diogneto1, que olhava, como admiração, para as relações construídas entre cristãos. O “vede como eles se amam” que o terá encantado, pouco depois do período evangélico e que foi o motivo que atraiu tantos ao cristianismo, é essencial ao caminho para uma vivencia verdadeiramente cristã. E, no entanto….

No Evangelho podemos aperceber-nos que, apesar de alguns laços familiares, as relações entre os apóstolos estavam longe de ser as mais pacificas. Das suas páginas depreendemos que os apóstolos foram escolhidos por Jesus Cristo e não foram escolhidos uns pelos outros. Logo, isso não facilitava muito a criação de um grupo homogéneo. Para além disso, ao longo do texto evangélico, presenciamos cenas de discussão, luta para saber quem era mais importante, discussões sobre a aplicação do dinheiro, fugas diante a crise e traições. Nada do que um “bom grupo de amigos” não tenha e não conheça, em qualquer circunstância, organização, ou estrutura existentes em toda a história da Humanidade.

Penso que a profundidade e a sinceridade das relações humanas construídas na Igreja e, consequentemente, nas comunidades cristãs, sempre foram o parente pobre da evangelização.

De que vale uma comunidade paroquial onde tudo está organizado profissionalmente, onde prolifera dinamismo e arrojo pastoral e evangélico, se as relações interpessoais, incluindo com o próprio pároco, não vão além do sorriso fácil, da boa disposição permanente, mas fútil e fugaz, sem que haja espaço para a sinceridade de todos os sentimentos e estados de espírito humanos? De que vale ser pároco de uma comunidade onde não há espaço para a compreensão da tristeza, da frustração, da infelicidade, enfim, da vivência do pároco enquanto mero e simples ser humano, que pode partilhar com os “seus” tudo o que lhe vai na alma e no espírito, sem que esteja permanentemente a ser avaliado? De que nos vale uma vida de oração profunda, se não concretizarmos a sinceridade e a força da relação com Cristo, naqueles que fazem comunidade connosco? A começar por nós, presbíteros.

Impossível? Não. Nasci numa comunidade paroquial onde a base da sua estrutura assentava na fortaleza da amizade dos seus membros, reunidos em volta de Cristo. O que nos unia era a Igreja e Cristo, mas o que nos unia à volta de Cristo e da Igreja era a nossa amizade. É esse o espírito, o dos primeiros e últimos cristãos, um espírito que nasce da sua condição humana, é verdade, mas que a transcende, porque, como se dizia na epístola dirigida a Diogneto, é «força de Deus», «são manifestações da Sua presença». Porque a verdadeira e completa entrega em qualquer relação é precisamente isso: tornar Deus presente em todos os gestos.

1A carta/epistola a que me refiro foi escrita em grego e endereçada a Diogneto, que, apesar de ter o mesmo nome do tutor de Marco Aurélio, se considera que não será o mesmo. Quem a escreveu não sabemos, mas é possível que possa ter sido um dos santos mártires, Justino ou Luciano, mas também poderá ter sido um outro pagão, já que não é possível estabelecer uma data para a sua produção, sabendo-se apenas que terá sido escrita numa época de perseguições aos cristãos, talvez o último quartel do século II, sendo os últimos capítulos um acrescento tardio. (Fonte: https://www.snpcultura.org/pedras_angulares_a_diogneto.html)