Vivemos com pressa. Muita.

Viajamos para fazer mais um “check”; comemos sem saborear; conversamos sem escutar; bebemos sem brindar; lemos sem interiorizar; adquirimos para ostentar; aproveitamos a superioridade hierárquica para diminuir e espezinhar; organizamos para constar; tocamos sem sentir; beijamos para trair; ouvimos sem escutar; caminhamos para deambular; avistamos sem encontrar; olhamos sem ver.

Tudo se faz ritualmente. Não há nisto maldade. Vamos sendo influenciados pelos contextos em que estamos embrenhados, e acabamos por fazer o que possivelmente não era nosso desejo, mas só nos damos conta mais tarde, porque vivemos com pressa. A agenda está cheia, e as horas para cumprir tudo, revelam-se escassas, pelo que a pressa é constante. A sociedade sobrevive assim, e, como membros da mesma, é difícil não sermos contaminados.

No meio da pressa olhamos muito e vemos pouco. Precisamos de tempo para nos espantarmos com a natureza, para apreciar o mais singelo chilrear ou para escutar o vento forte que conduz à nossa janela, as grandes gotas da chuva torrencial que cai lá fora. Necessitamos deste precioso tempo para nos olharmos interiormente e remodelarmos o que necessita de obras. Mas, precisamos saber olhar o outro. Ainda somos cegos.

O olhar tem amplo poder, tanto para quem olha, como para quem é olhado. Os olhos tanto são capazes de mostrar o maior amor, como o pior desprezo. São capazes de aproximar ou repelir, de vestir ou de despir, de acolher ou de rejeitar, de abraçar ou de libertar.

Olhamos os outros sem os vermos de verdade, porque isso exige tempo e dedicação. Se não conseguimos construir e alimentar amizades sem lhes dedicarmos tempo, o mesmo acontece com a arte de saber ver. Precisamos de tempo. Tempo de qualidade para que os nossos olhos se cruzem com os de outrém, evitando julgamentos e condenações superficiais e desastrosas, pois, só assim, neste tempo dedicado a ver, é que vamos perceber alguém e entrar no seu mundo. Só desta forma o seu rosto se desnudará e tornar-se-á luminoso, porque os nossos olhos não condenam, mas acolhem e amam. E assim, daremos também a conhecer o nosso rosto, tantas vezes descaracterizado porque não nos permitimos ser olhados em toda a nossa simetria.

O processo de ver é difícil. Nem sempre o que vemos é agradável. Vemos a beleza do outro, mas também as suas debilidades, tal como vemos as suas vitórias, e as derrotas. Além disso, em toda esta dinâmica, vemos, mas permitimos que nos vejam, e isso é desconfortável, porque, possivelmente, pela primeira vez, estaremos a mostrar a quem partilha a vida connosco há tanto tempo, coisas nunca dantes reveladas.

O nosso olhar pode matar por ser capaz de mostrar um desprezo absurdo, tornando alguém isolado, fazendo assim com que abdique da sua condição relacional, simplesmente, porque não existiu capacidade de ver além das aparências. Facilmente isto acontece quando não gostamos de alguém, tornando-se difícil ver esse rosto livre dos nossos pré-conceitos.

Torna-se urgente olhar as particularidades do nosso semelhante, indo além das primeiras impressões, para que o seu rosto se ilumine, e nasçam laços fortes e profundos, que só uma vida repleta de olhares é capaz de gerar, caso contrário, a falta de empatia será tal, que mesmo no seio familiar, só o laço de sangue nos salvará da total indiferença. Vem-me à memória um trecho de “O Bracinho”, de Carlos Tomé: “olhei-o nesses olhos que tantas vezes me fitaram com uma ira desmesurada para as tropelias infantis de outrora, procurei reencontrar neles o temor que me infundiam, tentei recordar aquele homem forte que eu amei apesar das sovas e dos castigos (…) mas na minha frente, (…) estava alguém que só não me era completamente indiferente por sabê-lo meu pai.”

Num tempo em que a distância física nos pode manter seguros, talvez o nosso olhar possa ser um resgate para muitos.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia