
Havia passado alguns meses em Genebra. Rumo a Paris decidido a alcançar um pouco do Sul, até Harles. Foi anoitecendo. Para economizar peço um chocolate quente e um brioche. Lembrei-me, num esgar, da inconsciente sátira da rainha Maria Antonieta, quem não tem pão, coma brioche. Poucos eram os viajantes naquele dia e hora. O comboio atrasara pela circunstância do intenso nevão. Numa estação que esqueci, mudei de comboio, assim me aconselhou o revisor, sendo de imediato avisado que o comboio só retomaria a viagem pela manhã seguinte. Quem saiu tinha o destino certo. O Meu não. Consultei o relógio: onze horas da noite. Reparei que um pequeno grupo de passageiros falava em voz alta ao funcionário da estação. Só então reparei que tinha em letras acesas, mas quase imperceptíveis pela cortina intensa do branco quase opaco, o nome Gare de Chateaucreux. Dirijo-me, ou junto-me ao pequeno grupo de passageiros para uma pequena informação: onde pernoitar. Se próximo havia algum hotel, qualquer lugar para passar a noite. Sou informado que os táxis estavam fora do horário habitual. Então? Pergunto. Tiritava a uns 15 graus negativos.
Gentilmente o funcionário conduziu-me, assim como ao pequeno grupo de passageiros a uma pequena, mas acolhedora sala de espera, onde poderíamos passar a noite. Pela manhã, às 5 horas, a gare retomaria os serviços habituais, desejando-nos um Joyeux Nöel. Só, então, me lembrei que era noite de Natal.
Éramos cinco indivíduos, uns mais jovens que outros, olhando-se, e sem palavras. Mas não tardou o reconhecimento, numa gargalhada, pela circunstância de prisioneiros em Noite tão fraternal e simbólica. E logo se fez o reconhecimento em quatro dos cinco presentes: dois espanhóis, fazendo as diferenças: eu de Navarra, Pamplona. Eu, basco, de Guernica. Eu de Varsóvia, Polónia. Eu do Algarve, Portugal. Por fim, o 5.° viajante, tímido: Eu de Dalva, Tunísia.
Ficámos no silêncio por um tempo. Foi o jovem de Guernica, de nome José, consultando o relógio, logo se ajoelhou, pronunciando Natividad Noche buena. Só então me veio a saudade dos tempos, passado e recente. Nesse ano tanto acontecera: a morte de minha Mãe, o fim da ocupação de grupo colonial indiano: Goa à cabeça na renúncia do governador de Goa, Vassalo e Silva desobedecer às ordens de Salazar, para que os soldados portugueses lutassem até à morte. O início da guerra em África, dita portuguesa. E eu ali, num pequeno grupo de cinco homens, de culturas diferentes, mas homens jovens, cada qual em imagens cerebrais e de ausências de famílias, de amigos. Sei lá! Tarek, o tunisino ficou afastado. José foi aproximando o árabe do grupo. Viens, mon frére… Je suis prêtre (Vem meu irmão, eu sou padre).
Ficámos num silêncio a quatro. Foi Firminio, o jovem de Pomplona quem cortou o silêncio: Um padre, e basco! Frederico, o polaco rompia a voz num cântico. Ouviu-se um Pardon. Era o ferroviário que vinha ofertar, numa enorme cafeteira, a ceia do Natal comum, ficando entre o grupo. Monsieur? perguntámos em grupo: Só Pierre, disse, naturalmente.
E nessa camaradagem criada numa oportunidade dum imenso nevão, se festejou a Noite de Natal em que cada um cantou a sua cantilena natalícia. Tarek, quebrando o seu ritual de fé, bebeu do vinho que Pierre ofertara, cantando, no seu árabe natal, criando um ecumenismo ali aceite e abraçado numa amizade de continuidade.
Eu, José, Firminio, Tarek, Frederico e Pierre levámos a noite, aguardando o clarear do dia, que se fez numa amizade que o tempo diluiu, só… Por isso guardo o registo. Passados cinquenta anos: 1961-2011, fomos cinco jovens, por circunstâncias particulares dos seus países de origem, enxotados pelos governantes dos tempos que queremos esquecer. Mas não! Neste Natal de 2011, ainda, nessa… indelicada política de econometria convidam a juventude portuguesa a partir: Vão-se embora daqui, de Portugal. Ignóbil convite. Já nos tínhamos esquecido!
A ilustração é um pormenor da “Sagrada Família” do pintor El Greco – Museu de Toledo.