ir_cristina_silvaÉ natural de Lagoa, mas com 10 ou 11 anos foi viver para São Lourenço do Palmeiral, na freguesia de Pêra, onde permaneceu quase até acabar a formação superior, regressando depois a Lagoa para onde os pais, entretanto, tinham voltado.

Licenciou-se em Matemática na Universidade do Algarve em 2002, foi professora de Educação Moral e Religiosa Católica durante três anos em Lagoa e Estômbar e de Matemática durante um ano em Estômbar, mas a inquietação interior levou-a a iniciar em outubro de 2005 uma experiência de vida consagrada na congregação das Carmelitas Missionárias em Madrid (Espanha).

Há vários anos que trabalha em Granada (Espanha) num colégio daquele instituto que acolhe mais de 800 alunos e está presentemente a acabar a licenciatura em Teologia.

No próximo sábado, 15 de outubro, a irmã Cristina Silva, de 37 anos, celebrará a sua profissão perpétua na sua igreja paroquial de Lagoa na eucaristia das 16h, presidida pelo bispo do Algarve, e o Folha do Domingo foi falar ela. Entrevista e foto por Samuel Mendonça

Aos 14 anos foi quando pensaste pela primeira vez em ser religiosa?

Sim. O meu caminho de fé teve início pela mão da família. Era um bocadinho arisca a nível de vivência de fé. Gostava de ir à catequese e ia à missa porque tinha de ir, mas nada me convencia.

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“A maioria das crianças gosta muito da catequese e, chegando à adolescência, tem a primeira crise de fé. Comigo foi um pouco ao contrário

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Foste para a catequese aos seis anos?

Fui com sete. A maioria das crianças gosta muito da catequese e, chegando à adolescência, tem a primeira crise de fé. Comigo foi um pouco ao contrário. Tive uma vivência de fé na infância que era um bocadinho por arrastamento e, mais ou menos, na adolescência começou-se a dar ali uma volta dentro de mim mesma. Agora olhando para trás creio que foi um processo de conversão para começar a levar as coisas da fé com seriedade e convencer-me realmente da existência de Deus.

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“(…)sempre tinha tido uma «alergia» muito grande às freiras e às religiosas

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O que é que aconteceu para essa mudança?

Nada de extraordinário. Lembro-me, por exemplo, de um livro que li sobre a mensagem de Fátima que me tocou profundamente e comecei a acreditar, de verdade, em Deus a partir desse momento. E depois isso foi-me levando a um processo de coerência de vida e de fé, a um compromisso na paróquia com coisas tão simples como ler na eucaristia ou colaborar na catequese. Quando tinha já 14 anos fui a Vila Viçosa, a um encontro vocacional interdiocesano das dioceses do sul e aquilo marcou-me muito. Interiormente também já tinha a predisposição para levar as coisas da fé a sério e o testemunho vocacional de uma carmelita descalça do Patacão chamou-me imenso a atenção, eu que sempre tinha tido uma «alergia» muito grande às freiras e às religiosas, apesar de ter catequese com elas em São Lourenço do Palmeiral. Na altura pensei: «mas como é que uma mulher fechada dentro de um convento pode ter uma aparência e uma conversa tão normal e ser feliz?» Aquilo mexeu comigo por dentro e passou-me a «alergia» às freiras. Lembro-me que nesse mesmo encontro D. Manuel Madureira desafiou a que nos perguntássemos o que é que Deus queria de nós. A partir daquele momento ficou a «sementinha» de que Deus me quereria na vida consagrada. Mas tinha consciência que era muito nova e depois de uma conversa em casa prometi a mim mesma que era assunto encerrado e que nunca mais iria tocar nele.

Mas achas que o facto de teres convivido durante algum tempo de perto com a comunidade das irmãs em São Lourenço te ajudou a identificar com a vida consagrada?

Creio que «bebi» muito a dimensão missionária daquelas irmãs, embora sem me dar conta.

Identificavas-te e projetavas o teu futuro na vida religiosa à imagem delas?

Não.

Mas por não te identificares, concretamente, com o seu carisma religioso?

Não sei se era o carisma, se era uma questão de afinidade. Mas a partir daquela altura passei a querê-las de outra maneira.

Então não foi o contacto com as irmãs que te fez pensar em seguir a vida religiosa?

Não. O testemunho da tal carmelita descalça foi o que me fez mudar totalmente.

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“A presença misteriosa de Deus na vida daquela carmelita descalça (…) foi o que me fez deixar de ter «alergia» à vida consagrada

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Estavas destinada ao Carmelo.

[Risos] É curioso. Despertou-me um interesse tremendo pelo Carmelo. Não conhecia nada das carmelitas, nem sabia quem eram, mas aquela mulher, carmelita descalça, fechada num convento de clausura… A presença misteriosa de Deus na vida daquela carmelita descalça, creio eu, foi o que me fez deixar de ter «alergia» à vida consagrada. Comecei a ter admiração e ao mesmo tempo uma curiosidade enorme pela vida religiosa. Tinha grande curiosidade em conhecer o Carmelo Descalço, em concreto, o que acabou por acontecer com 18 ou 19 anos quando já estava na universidade.

Mas, curiosamente, não foste para as Carmelitas Descalças.

Não. Na altura, durante um tempo de discernimento vocacional, questionei isso mas a vida ativa missionária chamava-me muito e creio que o que me levou ao Carmelo Missionário foi o Carmelo Descalço. Depois, conhecendo as irmãs Carmelitas Missionárias na residência universitária em Faro comecei a ter com elas, e com um tipo de vida religiosa que desconhecia, uma afinidade muito grande.

Portanto, o carisma estava definido – era o carmelita – mas não te vias enclausurada.

Não era tanto o não me ver enclausurada… Acho que não sabia muito bem.

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“Vivi um período em que fui adiando sem pensar no assunto

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Vias-te mais numa vida ativa fora de um convento?

Na altura encerrei o assunto e pensei em terminar os estudos e adiar a decisão para quando já fosse independente. Vivi um período em que fui adiando sem pensar no assunto. Por um lado acreditava que Deus me chamava à vida religiosa, mas por outro não queria porque achava que ninguém queria ser freira hoje em dia e que seguir a vida consagrada me traria um monte de problemas.

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“Fui resistindo (…) na esperança de que me passasse e que a vida me levasse por outro caminho.

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Portanto resististe com todas as tuas forças.

Fui resistindo continuamente na esperança de que me passasse e que a vida me levasse por outro caminho. Ouve um tempo em que pensei que a entrega da minha vida a Deus seria como leiga, mas continuava numa contínua procura interior de saber o que é que Deus queria realmente de mim. Entretanto no âmbito da Associação de Jovens Universitários Cristãos (AJUC) projetámos uma experiência de vida em comunidade ao serviço da diocese e eu achei que poderia passar por ali o meu futuro. Essa experiência acabou também por me marcar fortemente, mas percebi que estaria a fugir do que sentia que Deus queria para mim: entregar a vida ao serviço da Igreja, com uma grande dimensão de evangelização, para ajudar a que outros também se pudessem encontrar com Deus.

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“Tinha muitos medos, mas senti que tinha de ser sincera comigo mesma

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E a tua vida tem sido vivida dessa forma sempre na área da educação.

Sim. Primeiro como professora de EMRC. As aulas de EMRC foram uma coisa que nunca pensei fazer, mas a escola em Lagoa ficou sem professor e vi-me a dar aulas da disciplina sem imaginar. Sentia-me como peixinho na água, no entanto continuava a sentir que Deus me pedia mais do que isso. Tinha muitos medos, mas senti que tinha de ser sincera comigo mesma.

Para além das experiências marcantes que referiste, como a participação no tal encontro vocacional interdiocesano e na AJUC, a participação nas Jornadas Mundiais da Juventude foi também um marco no teu percurso vocacional.

Sim, sobretudo a de Roma no ano 2000, porque já estava a aproximar-se o final dos estudos.

Lembro-me da forte interpelação vocacional que o papa João Paulo II deixou na vigília de oração à noite e na eucaristia no dia seguinte. E aquilo, bem…

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“Percebi que poderia entregar a minha vida a Deus de outra maneira

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Parecia que estava a falar para ti?

Autenticamente. Parecia que estava realmente a falar para mim e aquilo desconcertou-me por dentro. Percebi que poderia entregar a minha vida a Deus de outra maneira.

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“João Paulo II marcou-me imenso

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Achas que Deus se serviu daquele homem, já muito fragilizado, para te falar?

[Emocionada] João Paulo II marcou-me imenso. Na primeira Jornada Mundial da Juventude em que participei, em Paris, em 1997, chamou-me a atenção a força que o movia apesar de já estar bastante fragilizado. Apercebi-me da dimensão do mistério de Deus na vida daquele homem e, ao mesmo tempo, na vida de tantos jovens que ali estavam.

E João Paulo II foi-me acompanhando, não só porque também li vários livros dele, mas também pelas interpelações que lançava. Ele morreu em abril de 2005 e eu comecei o postulantado nessa altura. Lembro-me de refletir sobre o contraste entre a sua vida e a minha no que se refere à entrega à Igreja, ele já muito fragilizado com uma vida de total entrega e eu, na força da vida, sem me decidir a dar o passo. Acredito, por isso, que Deus se vai servindo de mediações humanas.

Foi nessa altura que as tuas resistências começaram a cair?

Sim. E nessa altura já contava com três anos de acompanhamento espiritual. Foi um processo longo que me foi fazendo amadurecer humanamente e na fé. Foi um tempo de intensificação pastoral na paróquia, na diocese, de participação nos Convívios Fraternos que me marcou muito pelo testemunho da fé a outros jovens e por ver a ação de Deus na vida de outros. Comecei a serenar a inquietude e cresci na fé e na vida de oração até chegar ao momento de aceitar que o meu caminho seria por aqui.

Os Convívios Fraternos juntam-se então às vivências que marcaram o teu percurso vocacional.

Sim, os Convívios Fraternos marcaram-me de um modo muito forte.

Fizeste o convívio e depois integraste a equipa diocesana?

Sim. Fiz o convívio com 18 anos e passados dois ou três anos convidaram-me para a equipa. Toda essa experiência no dinamismo dos Convívios Fraternos foi-me ajudando a perceber que realmente a minha vida passaria por ser testemunha deste amor de Deus que fui descobrindo e da dimensão da sua salvação na vida das pessoas. Sentir-me mediação humana de Deus nos Convívios Fraternos foi significativo.

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“Houve uma empatia entre a minha procura e as origens das Carmelitas Missionárias

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O facto de teres vivido na casa das irmãs Carmelitas Missionárias ajudou a escolheres a congregação?

Sim. Vivi quatro anos na residência [universitária] e conheci as irmãs até da cozinha para dentro. Viver com elas a normalidade da vida chamou-me muito a atenção. O facto de ter lido um livro do padre Palau, o seu fundador, ajudou-me a confirmar que não se tratava apenas de uma simpatia pelas irmãs mas de uma identificação com a origem da congregação porque a identidade do Carmelo Missionário é fortemente eclesial. A dimensão de Igreja é a raiz do carisma e como eu tinha uma forte experiência de me sentir e de ser Igreja a nível paroquial e diocesano, identifiquei-me logo muito. Houve uma empatia entre a minha procura e as origens das Carmelitas Missionárias que privilegiam tanto a dimensão contemplativa como a dimensão missionária. Então tive de experimentar.

Tiveste alguma experiência de namoro?

Não. Amores tive, mas namoros não. Ainda que me tivesse enamorado, nunca procurei uma relação com outra pessoa porque não me via casada nem me sentia chamada ao matrimónio.

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“Continuo a achar que existe uma grande sede de Deus

“Nós, cristãos, temos um tesouro imenso que, às vezes, não sabemos transmitir

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Há pouco falavas na questão de se ser instrumento de Deus na vida das pessoas e uma vez também me disseste que uma das coisas que mais te interpelava na sociedade atual era a sede que as pessoas têm de Deus. Continuas a pensar assim?

Continuo, ainda que agora veja as coisas de maneira mais complexa. Continuo a achar que existe uma grande sede de Deus. Na altura até acreditava que as pessoas estavam conscientes dessa sede, mas hoje acho que essa consciência não existe. Creio que existe uma procura muito grande de espiritualidade e da transcendência até em pseudo-religiões ou pseudo-espiritualidades. Por um lado temos a realidade, a nível da Europa, de ser muito complicada hoje a transmissão da fé e por outro esta contínua procura do transcendente e do sentido da vida. Procura-se o transcendente em tudo e mais alguma coisa e nós, cristãos, que tivemos a graça de nos encontrarmos com o Senhor, temos um desafio muito grande diante do mundo: o de sabermos oferecer a nossa espiritualidade cristã. Nós, cristãos, temos um tesouro imenso que, às vezes, não sabemos transmitir. E não passa tanto por transmiti-lo com dinâmicas pastorais extraordinárias, mas pelo testemunho de vida. O Deus-amor chama a esta dimensão da entrega e doação e quando fazemos essa experiência na própria vida começa a acontecer história da Salvação na vida de cada um. Creio que hoje o que faz falta é o que foi acontecendo nos primeiros tempos da Igreja: a dinâmica da transmissão da fé pessoa a pessoa.

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“A personalização da fé parece-me que é fundamental

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Esta diminuição acentuada do número de vocações que se vive hoje é também um desafio à tua consagração?

Também. Na congregação estou agora a trabalhar muito a nível pastoral, incluindo na pastoral juvenil e vocacional da província europeia da congregação e estas questões fazem parte do meu trabalho no dia-a-dia, procurando ajudar as pessoas a viver experiências profundas de encontro com Deus. Muitas vezes vivemos experiências de fé superficiais e os cristãos do século XXI ou são cristãos que fazem a experiência de Deus ou não são cristãos, como diz Karl Rahner. Essa personalização da fé parece-me que é fundamental. Sem estes processos de personalização da fé não podemos falar de vocações nem à vida religiosa, nem à vida sacerdotal, nem ao matrimónio.

Então és chamada a contribuir para que isso aconteça?

Acho que sim.

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“O despertar vocacional nasceu do despertar da fé

“A noite e a escuridão também fazem parte dos processos de fé 

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Como avalias e que balanço fazes do teu percurso vocacional?

Longo, largo e, muitas vezes, com muitas interrogações sem perceber nada. Não consigo separar a experiência de fé da dimensão vocacional. O despertar vocacional nasceu do despertar da fé. Foi uma chamada contínua à conversão, numa permanente procura de Deus. Há momentos em que as coisas parecem todas muito claras, mas também há momentos de escuridão. A noite e a escuridão também fazem parte dos processos de fé e não podemos querer viver a fé sem essa dimensão de mistério.

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“(…) descobrir a Deus como salvador e libertador (…) é uma experiência que (…) vai marcar todo o meu percurso

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Como é que esperas viver a tua consagração? Marcada por alguma caraterística ou focada numa determinada área?   

O que possa fazer será sempre marcado pela dimensão de dar de graça o que recebi de graça.

A experiência muito forte que fiz no noviciado de descobrir a Deus como salvador e libertador que torna plena a minha vida é uma experiência que, creio, vai marcar todo o meu percurso como pessoa, como mulher de fé, como consagrada e como carmelita missionária. Como? Em concreto, não sei. Neste momento pede-se-me uma missão mais a nível pastoral, de pensar o que poderá ser a nossa ação pastoral com jovens. Neste momento é uma prioridade das carmelitas missionárias na Europa descobrir como poderemos ser agentes de evangelização e de transmissão da fé para as novas gerações. Creio que a dimensão de encontro com Deus irá sempre marcar a minha vida e a minha missão com os outros.

Tens estado a trabalhar em Granada com jovens num colégio da congregação.

Sim. Nos dois primeiros anos tinha a coordenação do departamento pastoral do colégio. No terceiro ano pediram-me para estudar Teologia e tive de ter uma grande redução a nível de aulas. Nos últimos três anos continuei trabalhando, incluindo na pastoral catequética na preparação para o Crisma e na coordenação e formação dos catequistas que são cerca de 20.

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“Se algum dia me destinarem ao Algarve virei com muita alegria e muito gosto

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Disseste um dia que gostavas de poder vir a ter oportunidade de trabalhar na Diocese do Algarve. Mantém-se essa vontade?

Se algum dia me destinarem ao Algarve virei com muita alegria e muito gosto. É a terra onde nasci e sinto-me filha desta Igreja do Algarve. O Algarve continua sempre no coração, mas tenho de estar sempre disponível para ir para onde a congregação entenda que é mais importante a minha presença. Nesse sentido, se algum dia considerarem que é no Algarve, virei feliz e contente.

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“Se Deus chama, vai pondo as pessoas concretas no nosso caminho

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Que mensagem gostarias de deixar a alguém que neste momento se sinta interpelado a seguir a vida consagrada?

Se essa interpelação lhe provoca desconcerto interior, deve procurar alguém com quem partilhar essas inquietações porque os processos de acompanhamento fazem muita falta. Ninguém faz discernimentos sozinho. Se Deus chama, vai pondo as pessoas concretas no nosso caminho. Precisamos deixar que Deus vá fazendo as coisas na nossa vida.