As propriedades "espirituais" do "ar"

1 – Sendo o «ar» um corpo físico, de natureza material, parece não fazer sentido que se lhe atribuam propriedades «espirituais». Contudo, dadas as suas características de «intocável sensitivo», temos de reconhecer que, ao menos simbolicamente, existe no «ar» algo de invisível, de intocável, quase poderíamos dizer, de imaterial. Neste sentido, damos razão aos sábios antigos que, pondo de lado a água e outros elementos mais materiais como a terra e o fogo, se tenham fixado no «ar» como o grande princípio de toda a realidade material existente.

2 – Por força da sua natureza, o «ar» tornou-se um elemento profundamente simbólico, prenhe de valor significativo na abordagem de realidades diversas de índole espiritual. Na linguagem bíblica, o mesmo vocábulo (πνευμα) que designa, antes de mais, o «ar» que respiramos, inspirando-o e expirando-o continuamente, num ritmo vital e vivificante, torna-se designação do próprio Deus, definido por «Espírito» (πνευμα). «Deus é Espírito» (Jo.4,24). Contudo, não podemos entender este termo univocamente. De facto, πνευμα ou espírito tem uma grande amplitude de significados, mesmo no interior das diversas religiões, de modo que, ao usar o termo, importa tentar saber o significado que se lhe atribui.

3 – Para termos uma ideia sumária desses significados, lembremos alguns:

No antigo Egipto, as palavras Ka e Ba, que se traduzem por espírito, significam vento, vida, força vivificadora e fecundante. Na África, na língua Kikongo, a palavra Roho traduz-se por espírito, no sentido de vento ou de estar com. No Budismo, há vários vocábulos que são muitas vezes traduzidos por espírito, mas com o significado de «força vital», de «consciência», etc. No Islamismo, nafs e ruh, podem traduzir-se por espírito, mas também podem ser entendidos no sentido de alma, pessoa, sopro, vento; e, mais tarde, como anjos. No Antigo Testamento, ruah significa sopro, respiração, ar, vento, força vital, força de vontade e espírito. Tem significado teo-antropológico, porque é usado em relação a Deus e ao ser humano. Assim, espírito dito a respeito do homem, só pode entender-se no sentido em que o homem deve a sua existência ao Espírito de Deus.

No Novo Testamento, quando se fala do Espírito acrescido do adjectivo santo, fala-se de uma realidade divina, ou seja de uma das três Pessoas divinas, designada pelo nome de Espírito Santo, distinto do Pai e do Filho.

Como pode verificar-se, por esta pequena amostra, a palavra «ar», como tradução do hebraico ruah ou do seu equivalente grego πνευμα (pneuma) tem uma panóplia imensa de significados que vai, desde o ar que respiramos à Pessoa divina do Espírito Santo. É uma palavra pequena (duas letras apenas), com uma grande riqueza de significados que só poderão ser captados, tendo em conta as diversas culturas e religiões. Não estamos, certamente, diante de um termo unívoco!

*Bispo Emérito do Algarve