Em sua mão estão as profundezas da terra
e pertencem-Lhe os cimos das montanhas.
D’Ele é o mar, foi Ele quem o fez,
d’Ele é a terra firme, que suas mãos formaram. (Salmo 94-95)

Padre Miguel Neto

O Papa Francisco instituiu, este ano, com data marcada para 1 de setembro, o “Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação”. Doravante, todos os católicos serão convidados a rezar, neste dia em particular, pela casa comum que habitamos. Esta data já era celebrada pelos irmãos ortodoxos e Francisco, preocupado com o estado do planeta, pediu que ao longo do mês de setembro, todos os que fazem parte da sua Rede Mundial de Oração e oram pelas suas intenções, meditassem e pedissem que a terra e a sua conservação passe a ser uma prioridade.

O Santo Padre dizia na sua mensagem para esse dia1, citando São Boaventura, franciscano, «que a criação é o primeiro “livro” que Deus abriu diante dos nossos olhos, para que, admirando a sua ordenada e maravilhosa variedade, fôssemos levados a amar e louvar o Criador (cf. Breviloquium, II, 5.11). Neste livro, cada criatura foi-nos dada como uma “palavra de Deus” (cf. Commentarius in librum Ecclesiastes, I, 2)». E muitos foram os santos, como S. Francisco ele mesmo ou S. Bento, que encontraram Deus no irmão Sol e na irmã Lua, no ciclo das estações e nas maravilhas que a natureza opera, oferecendo-se generosamente a nós, essa natureza que é espelho de Nosso Senhor e da sua capacidade criadora e em relação à qual o Papa Francisco nos convida e interpela a que cumpramos a nossa «vocação de guardiões da obra de Deus2».

Imersos no mundo que nos rodeia, olhando para as florestas e os mares, para os animais e plantas, para tudo o que vive, como é possível não perceber Deus? Se há dimensão na vida dos humanos onde tal é pacificamente entendível é no ambiente, onde a beleza e a perfeição somente possíveis no divino se encontram em todo o lado e em todas as relações. Quem não experimentou o nascer do sol e percebeu a grandiosidade que o mesmo esconde? Quem não contemplou a força das vagas e não entendeu que só Alguém maior pode gerar tal fenómeno? Quem não olhou para a cor perfeita de uma flor que se abre pela madrugada e não entoou um hino de louvor ao Criador? Dizia o Papa, «a espiritualidade não está desligada do próprio corpo nem da natureza ou das realidades deste mundo, mas vive com elas e nelas, em comunhão com tudo o que nos rodeia»3.

Ora, como em relação a tudo o que Francisco diz e em tudo o que pretende acentuar, logo surgem vozes críticas, vozes que revelam, precisamente, a necessidade que muitos têm de se juntar a interesses maiores e menos virados para o bem comum, mas sim para o bem próprio.

O Cardeal Gerhard Müller, que Francisco não reconduziu no cargo de Prefeito para a Congregação para a Doutrina da Fé, disse na edição de 27 de julho ao jornal australiano The Weekend4 que os «católicos não são obrigados a seguir a agenda eco esquerdista do Papa Francisco de se opor a combustíveis fosseis e de favorecer acordos acerca de assuntos ambientais». Mais: considera que a Igreja não é «um partido verde» e que a «política ambiental não tem nada a ver com a fé e moral» e que os bispos se deveriam centrar nas questões da religião e não da política… Fez-me lembrar alguns comentários que li recentemente a um artigo meu… Como se os cristãos – leigos e consagrados – não fossem cidadãos e cidadãos com obrigações morais e de ação, de empenhamento, para que a cidade de Deus seja uma realidade na terra, construída pelas suas mãos e com um coração livre, aberto e generoso.

Na verdade, mais do que enfurecer-me, estes tipos de comportamento e de atitude entristecem-me, porque revelam precisamente pessoas ressabiadas e que têm agendas pessoais, as mesmas que criticam os outros, mas cujas ações só perpetuam esta visão enviesada e triste do mundo: os outros que façam, que esse não é assunto meu.

Neste momento em que vivemos um ponto decisivo na nossa relação com o ambiente, numa verdadeira crise ecológica, onde por todo o lado encontramos lixo (sobretudo nos mares e eu tive essa experiência, não em Portugal, mas na Indonésia, onde a cada mergulho naquele que supostamente é um dos maiores paraísos naturais do planeta, se encontra lixo em abundância), assistimos a fogos descontrolados e propositadamente ateados, gastamos combustíveis que destroem a atmosfera, assistimos a alterações climáticas que são bem patentes, ou seja, num momento em que estamos numa crise ecológica declarada, há que converter precisamente o coração que se diz crente, que pertence a homens e mulheres de fé. O desafio que nos fez Jesus também entra nesta dimensão: amar tudo e todos como a nós mesmos implica cuidar de tudo e todos como de nós mesmos. «Viver a vocação de guardiões da obra de Deus não é algo de opcional nem um aspeto secundário da experiência cristã, mas parte essencial duma existência virtuosa », diz Francisco. E nós somos somente guardiões da obra divina, pois a mão Dele criou os mares e as montanhas, os rios e os desertos, as planícies e os glaciares. E somos, também, os pecadores que, pela nossa mão, agimos contra o mundo em que vivemos e nos foi oferecido.

Precisamos de nos purificar e converter, pois pela mão Dele se criou e… pela nossa se destrói! E é preciso essa conversão em cada um de nós, em pequenos gestos, coisas simples, que apenas são pequenos desafios e que permitirão que as gerações futuras continuem a ser herdeiras da Criação e guardiãs da obra maravilhosa de Deus. Eu também prometo que olharei para a minha mão. E se isto é ser de esquerda, digo como o Arcebispo de Braga, D. Jorge Ortiga disse esta semana numa entrevista ao jornal O Observador, que «a Igreja é de esquerda mais do que ninguém6»!

1http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/messages/pont-messages/2019/documents/papa-francesco_20190901_messaggio-giornata-cura-creato.html
2Laudato Si, 216-2017
3Laudato Si, 216-2017
4https://www.theaustralian.com.au/nation/nation/pope-not-infallible-on-the-environment-visiting-cardinal-insists/news-story/c9be70d1ffbadde9c97d55c91e321394
5Laudato Si, 216-2017
6https://observador.pt/especiais/arcebispo-de-braga-se-esquerda-e-estar-do-lado-dos-pobres-e-excluidos-a-igreja-e-de-esquerda-mais-do-que-ninguem/