O padre António Manuel Martins realizou em 1997 a tese da sua licenciatura canónica em Teologia sobre ‘A sinodalidade na vida da Igreja local’, um tema que já na altura o motivava. Em 2013, foi um dos conferencistas que a Diocese do Algarve convidou a dissertar sobre 50 anos do Concílio Vaticano II. Na altura afirmou que aquela iniciativa poderia constituir, mais do que momento para se redescobrir a herança conciliar, um acontecimento que projetasse a Igreja algarvia “num caminho de renovação e na perspetiva de convocação de um possível Sínodo”.
Neste momento, em que a diocese se encontra a dar resposta à fase diocesana do Sínodo convocado pelo Papa Francisco precisamente sobre o tema da sinodalidade, Folha do Domingo quis ouvir o padre António Martins sobre o assunto. Entrevista conduzida por Samuel Mendonça.

Já em 1997 a tese da sua licenciatura em Teologia Pastoral teve como tema ‘A sinodalidade na vida da Igreja local’. O que é que o levou naquela altura a pensar já esta questão da sinodalidade e a elegê-la como tema daquele trabalho?
Tudo começa, curiosamente, a partir de uma experiência pastoral concreta que marcou o início da minha vida de padre nesta diocese, que foi ter iniciado o meu ministério na corresponsabilidade com mais dois colegas, em que assumimos de uma forma in solidum várias paróquias da cidade e da periferia de Loulé – eu, o padre [Henrique] Varela e o padre Nobre [Duarte] –, uma experiência de ministério partilhado colegialmente. E, depois, o início também de um processo que, entretanto, a mudança dos tempos e o evoluir da história, se calhar, deixou perder pelo caminho –, o processo de renovação das paróquias através da metodologia de o ‘Movimento por um Mundo Melhor’ que hoje se revela uma metodologia autenticamente sinodal, motivando a participação das pessoas em pequenos grupos de reflexão, oração e partilha, constituindo a vida de duas paróquias (S. Clemente e S. Sebastião) em pequenas comunidades locais que se reuniam, ou por rua ou por zona ou por bairro, numa proximidade geográfica. Tínhamos lá cerca de 20 comunidades que viviam este dinamismo da corresponsabilidade numa análise da realidade e também numa procura de discernimento do que é que podiam fazer, numa resposta de maior fidelidade à ação pastoral, com os recursos e as possibilidades que tinham para aquele povo concreto que eram as pessoas de Loulé. Foi nesta prática de corresponsabilidade – com uma metodologia de renovação de paróquia que hoje, podemos classificá-la sem medo nenhum, de metodologia sinodal, com uma experiência de cooperação entre três colegas que partilhavam o seu ministério nas suas diferentes paróquias e um conjunto de leigos a iniciar um projeto de renovação paroquial – que me deu a curiosidade e a necessidade de aprofundar a dimensão da sinodalidade na Igreja local.
Contactei com o melhor que na altura se publicava na área da eclesiologia, da reflexão canónica sobre os conselhos pastorais e os conselhos económicos, sobre os sínodos diocesanos – era toda uma reflexão prática que se estava, muito inicialmente, a fazer mas havia já muito boa eclesiologia na área da sinodalidade – foi um trabalho que, confesso, me deu gozo e sonho. Foi, talvez, o trabalho académico que fiz até hoje com mais rasgos utópicos e prospetivos de uma Igreja renovada, que pode ser diferente se quisermos e nos comprometermos nessa direção a partir de hoje, agindo de forma diferente, superando modelos clericais, a entranhada passividade laical, práticas administrativas meramente burocráticas. Foi um trabalho utópico, verdadeiramente sonhador.
Depois, o meu percurso académico orientou-se para a área da antropologia teológica e arrumei a eclesiologia porque não eram mais esses os meus interesses. Também a vida da Igreja continuava na sua apatia, na sua desmotivação, nos seus hábitos adquiridos, com um certo cansaço e esgotamento. O sonho que alguns tinham – quer bispos, quer padres – pela inércia e pelo esgotamento de situações alternativas, também foi criando desencanto em muita gente. Portanto, o trabalho eclesiológico-pastoral, se calhar, nunca teve uma viabilidade prática, embora tenha começado por ser um trabalho a partir da experiência.

Mas encontrava entre os restantes membros do clero também essa preocupação sinodal em relação à Igreja?
Não. Encontrei num grupo de padres que teriam na altura 25 anos quando integrei o clero da diocese. Sou herdeiro dessa geração que traduziu o Concílio na vida da diocese, padres que na altura tinham acabado de ser ordenados com 23, 24 ou 25 anos, que viveram na formação do Seminário esta viragem de uma teologia apologética, tradicional (para não dizer tradicionalista) para uma teologia conciliar de fundamentação bíblica, para uma liturgia renovada. No pós-Concílio, nos primeiros 10, 15, 20 anos, a vida da diocese, pelo que conheci, teve uma profunda transformação, de corresponsabilidade. Com essa geração de colegas sempre me identifiquei e alinhei. A sinodalidade, sendo um termo novo, não é uma prática nova. A sinodalidade é a experiência de que somos uma Igreja-comunhão e somos comunhão de batizados na diversidade dos nossos ministérios, carismas, na complementaridade entre pastores e fiéis, com cada um a responder por si ao apelo do Espírito, mas de uma forma integrada, organizada, contextualizada na fidelidade à Palavra e num profundo discernimento espiritual.

Temo que as novas gerações de seminaristas e de futuros sacerdotes não tragam a memória de uma fidelidade ao Concílio porque já a perderam

Verifico uma crescente tendência de um neoclaricalismo, mais acentuado nas últimas gerações, com uma assimilação da renovação teológica muito precária, ou até marcadas por uma ideologia muito contestatária ao Papa Francisco ou à renovação litúrgica conciliar

Isso é uma clarificação que o Concílio veio determinar.
Veio marcar o horizonte da renovação da Igreja-Povo de Deus numa eclesiologia de comunhão. Veio contextualizar a hierarquia e o sacerdócio ordenado no contexto da condição batismal de todos os crentes. A dimensão da sinodalidade, expressamente, ainda não está no Concílio. Isso acontecerá mais tarde. O Concílio recupera os sínodos diocesanos, recupera as Conferências Episcopais, valoriza na Lumen Gentium o sentir dos crentes, a experiência da fé que cada crente faz na sua vida concreta. O sentir da fé de todos os crentes dá a unidade da Igreja e a permanência da Igreja na verdade pela assistência do Espírito Santo. Objetivamente, as bases de uma eclesiologia sinodal foram dadas pelo Concílio Vaticano II. Mas foi necessário fazer aprofundamentos. Eles vieram nos anos 90 e, sobretudo, nas nestas últimas décadas do século XXI e, mais intensamente, depois de 2015.
Volto atrás e concluo. Temo que as novas gerações de seminaristas e de futuros sacerdotes não tragam a memória de uma fidelidade ao Concílio porque já a perderam. Por vezes, afirmam-se numa certa hostilidade em relação à renovação litúrgica do Concílio. Temo que esta dimensão da corresponsabilidade, de saber escutar, de saber discernir, de tomar decisões na escuta das pessoas, na operacionalização dos conselhos pastorais, precise ainda de um longo caminho a fazer. Pelos meus alunos e pelo que vejo noutras dioceses, verifico uma crescente tendência de um neoclaricalismo, mais acentuado nas últimas gerações, com uma assimilação da renovação teológica muito precária, ou até marcadas por uma ideologia muito contestatária ao Papa Francisco ou à renovação litúrgica conciliar, recuperando linhas pré-conciliares, criando muita tensão na vida das comunidades e, às vezes, provocando cismas factuais com a afirmação de um estilo litúrgico autoritariamente imposto, completamente estranho à memória das comunidades.

(…)grupos que contestam o Papa Francisco, ligados a uma extrema-direita política e a um integrismo litúrgico e eclesiológico pré-conciliar. Com grandes patrocínios económicos, têm feito uma campanha vergonhosa de difamação do Papa

Essa vai ser uma das principais resistências a que esta iniciativa sinodal possa atingir os objetivos a que se propõe?
As resistências podem ser muitas. Muitas mesmo. Comecemos das menos ideológicas para as mais ideológicas. As menos ideológicas podem ser a sobrecarga de opções pastorais em que as dioceses estão metidas. Foi o Ano de São José, juntamente com o Ano da Sagrada Família, são as Jornadas Mundiais da Juventude, veio o Sínodo… E eu sou um apaixonado deste processo sinodal, mas reconheço que a documentação saiu tarde. Os documentos saíram e faltava a tradução para as línguas vernáculas de modo a facilitar o acesso das comunidades e das pessoas. Os timings começaram por ser profundamente apertados, impraticáveis mesmo. Era impossível alcançar alguns resultados significativos com aqueles timings propostos. Finalmente, o bom senso triunfou e os prazos foram prolongados porque era impossível fazer um trabalho sério de escuta sincera das bases, de dentro e de fora, de discernimento, ouvindo a sensibilidade das pessoas, num processo tão rápido. Se se fizesse naquele tempo, ou se fazia mal ou se queimavam etapas inúteis. A sobrecarga da vida pastoral das dioceses pode ter levado a pensar: «vamos despachar esta parte do Sínodo o mais rápido possível porque temos tanta coisa para fazer». Ou então: «vamos gastar 20% das nossas energias porque 80% precisam de ser colocadas nas Jornadas Mundiais da Juventude e vêm aí os símbolos a passar pelas dioceses». Ou então, como aconteceu na minha própria comunidade [Capela do Rato] – que é uma comunidade culta e bem formada –, as pessoas liam aquelas perguntas e ficavam a perguntar: «o que é que isto quer dizer? Isto é tão abstrato que não nos diz nada». Depois vim a saber que as perguntas foram feitas em língua inglesa e, ao serem traduzidas para as línguas vernáculas, algumas traduções perderam o sentido originário e não eram percetíveis pelos leitores de própria língua. Isto são resistências operativas.
Outra dificuldade é que não há prática de fazer estas consultas de mobilização do sentir dos crentes. Fazemos consultas administrativas, temos programas diocesanos, ouvimos as pessoas pró e contra, mas não é isso. O processo sinodal é mais do que isso, é um processo de escuta uns dos outros, de libertação da palavra e do sentir crente, em pequenos grupos ou comunidades. Para que, cada pessoa possa dizer o que sente, como se sente em Igreja, se se sente feliz, ferida, humilhada, como é possível de mudar, que caminhos gostaria que fizesse a Igreja para curar as feridas sentidas por tantas pessoas, vítimas de agressão, de humilhação, de exclusão.
A teóloga espanhola e membro da comissão metodológica do Sínodo, Cristina Inogês Sanz, que participou via zoom num ciclo de debates sobre o processo sinodal organizado pela Capela do Rato, dizia que aquelas perguntas se resumem a uma muito simples: «somos felizes como Igreja, como cristãos? E o que é que nos falta para sermos felizes? O que é que precisamos de mudar na nossa própria vida, na vida das nossas comunidades, na vida da Igreja toda para que o Evangelho seja uma bela notícia vivida e anunciada, vivida por dentro e comungada pelos de fora com beleza, com profecia, com novidade, com alegria?».
Um último aspeto tem a ver com a resistência ideológica de grupos que contestam o Papa Francisco, ligados a uma extrema-direita política e a um integrismo litúrgico e eclesiológico pré-conciliar. Com grandes patrocínios económicos, têm feito uma campanha vergonhosa de difamação do Papa. Estes grupos terão uma resistência declarada a todo este processo sinodal. Outros, possivelmente de índole conservador mais discreto, não o dirão, mas poderão ver este processo sinodal como uma protestantização ou uma democratização da vida da Igreja. Ao dar-se voz às bases, pensam que se está comprometer o lugar da hierarquia e do magistério, a sacrificar a autoridade sacral do ministério ordenado, a desconfigurar a dimensão tradicional da Igreja e a centralidade da figura do padre. Pode haver aqui muitos receios que este processo sinodal levanta, cria, motiva. Estes receios tornar-se-ão numa resistência passiva. Não é uma oposição ideológica declarada, é um «não fazemos», mas não se diz o porquê de uma forma ostensiva. Foi notícia há alguns meses a Diocese do Liechtenstein, perto da fronteira entre a Suíça e a Áustria, com um bispo muito conservador, que decidiu não participar no processo sinodal. Reagindo, um grupo de leigos tomou a iniciativa: «nós vamos dar o nosso parecer como se nos fosse pedido. O bispo não quer, mas havemos de fazer chegá-lo às instâncias sinodais e o processo sinodal tem de ser cumprido».

No simpósio que a diocese organizou em 2013 sobre o Concílio disse haver condições para superar a dialética entre “progressistas” e “conservadores”. Como é que vê o surgimento desses grupos de grande oposição ao Papa Francisco? Como é que é possível hoje em dia, se calhar com o apoio mais das gerações mais novas, querer-se regressar a essa dimensão de Igreja pré-conciliar?
Hoje não tenho essa visão tão otimista. Na altura em que o disse acreditava que estavam criadas as condições para um diálogo interno de uma diversidade reconciliada na tradição católica, uma diversidade de tradições, uma pré-conciliar e outra conciliar que se pudessem reconciliar e coexistir em conjunto. Era um caminho possível. Foi essa boa vontade que João Paulo II e Bento XVI desejaram, quiseram, mas hoje a avaliação feita é que os objetivos desejados não foram alcançados. Estes grupos que celebram com a liturgia pré-tridentina tornaram-se profundos espaços de luta ideológica ao pontificado do Papa Francisco e espaços de militância e de contestação à reforma conciliar.

E o que é que contribuiu para isso?
Uma radicalização da dimensão ideológica destes grupos. Uma deriva à direita, transversal à sociedade contemporânea. Uma deriva restauracionista, saudosista do passado, que vê na religião e também na política numa aliança tácita e estratégica. Também, perante a aceleração da evolução social, a fragmentação das identidades e da memória, acontece o reforço ideológico do tradicionalismo como segurança ideológica, esquecendo que a tradição é evolução criativa.

Mas esses grupos viram nisso a resposta à secularização da sociedade, uma defesa em relação a esse fenómeno?
Viram uma defesa, uma afirmação, uma segurança ritual, a afirmação de uma identidade de uma Igreja que permanece a mesma ao longo da história e não aceitam que a Igreja se adapte a novos contextos humanos, culturais, litúrgicos. Veem a Igreja, fundamentalmente, como uma peça de museu. Fazem da Igreja, ou pelo menos da prática comunitária, um gueto entrincheirado entre os bons de dentro e os maus de fora, os maus de fora a agredir os bons de dentro. Estas comunidades são, literalmente, peças de museu com uma liturgia e um ritualismo todo de recuperação, mas depois – e isto é o que está em causa – não se aceita a liturgia conciliar.
Aos padres que celebravam neste rito foi-lhes pedido que celebrassem também a liturgia conciliar e recusavam-se a fazê-lo. Ou seja, na possibilidade que lhes foi dada de fazer o encontro de uma reconciliação entre duas tradições, a liturgia tridentina e a reforma litúrgica de Paulo VI, podia ter havido um caminho de reencontro e teria sido benéfico para a Igreja.
Portanto, a possibilidade destes grupos se organizarem a partir de uma liturgia tridentina com autorização de Roma tornou-se, virando o «bico ao prego», em lugares subversivos de combate à unidade da Igreja e ao próprio ministério do bispo de Roma, na figura do atual papa, e isso é terrível. É a comunhão católica que fica comprometida.

Mas também há grupos não tão radicalizados dentro da Igreja que se identificam igualmente com essa ideologia…
Também. E com estratégias mais suaves, com uma profunda descrição, um profundo silêncio, mas que também navegam pela mesma constelação. É uma constelação muito complexa de resistência ao Sínodo e continuamos aí. Mas creio, o movimento sinodal a partir das bases trará a toda a Igreja um profundo impulso de renovação e de reforma, imparável.

(…)a sinodalidade será a forma e o estilo da Igreja no futuro

Já se confessou um “apaixonado” do Sínodo, mas esse “rasgo de utopia” que a sua tese carregava identifica-o no que deu origem à concretização desta iniciativa sinodal pelo Papa Francisco?
Sim. Eu brinco dizendo que o Papa Francisco «ressuscitou-me» a tese e a utopia [risos]. Não foi logo. Foi uma ressurreição lenta, mas a certa altura percebi que estávamos num tempo de evidência e de urgência, necessária e inadiável de viragem. Francisco traz isto para toda a Igreja a partir de uma experiência muito viva dele, de diálogo inserido na vida, na corresponsabilidade, na participação das comunidades populares da América Latina, que levam toda essa experiência do sentir, do decidir em Igreja a partir das bases das comunidades locais. Essa experiência tem a sua grande confirmação em 2007 na reunião dos bispos latino-americanos no Santuário de Aparecida em que Bergoglio é o relator, com a sua equipa de teólogos e de leigos, do documento final, no qual a teologia está ao serviço da experiência dos crentes. O ponto de partida é o que se sente no viver concreto da fé, na diversidade das realidades familiares, políticas, culturais, afetivas, de combate político, de inserção económica, de luta pela preservação da floresta amazónica, de integração das mulheres, de valorização do contributo da mulher nas sociedades tradicionais. Vemos essa linha muito forte desde a Evangelli Gaudium, que depois, progressivamente, se vai tornando operativa; começa na preparação do Sínodo para a Juventude e depois para a Família, operacionaliza-se mesmo na organização e celebração do Sínodo para a Amazónia. Já é a operacionalização de uma corresponsabilidade que vem das bases em que os crentes dizem, sentem e manifestam o seu sentir aos bispos que hão de tomar as decisões sinodais e que depois hão de trazer de novo ao povo de Deus e às comunidades locais o decidido para ser recebido. Porque outro processo da sinodalidade é a receção das decisões na própria vida das comunidades. É um processo que requer paciência, tempo, escuta permanente, que não quer pressas nem urgências nas decisões. Isto confirma-se também em 2015 com a revisão do estatuto jurídico do Sínodo dos Bispos e o pedido à Comissão Teológica Internacional para estudar expressamente o tema da sinodalidade. O conjunto de teólogos e teólogas, assessores e assessoras da Congregação para a Doutrina da Fé, publicou em 2018 o denso documento «A sinodalidade na vida da Igreja», que serviu de base, quer ao vademecum, quer ao documento preparatório do atual Sínodo. E o que lá se diz é que a sinodalidade será a forma e o estilo da Igreja no futuro. Curiosamente, estamos numa fase em que a urgência de operacionalizar a sinodalidade se torna evidente e inadiável.

Mas há o risco de encarar isto como um acontecimento, uma iniciativa que passa e não como algo que deve marcar a forma de ser e de estar da Igreja permanentemente?
Esse é o risco. Mas quer queiramos quer não, este Sínodo, o seu processo e todos os processos que hão de vir a seguir vão devolver a prática sinodal à vida da Igreja. Havemos de nos ver inseridos numa Igreja de futuro, dentro de 10, 15, 20 ou 50 anos, em que, gradualmente, a prática sinodal é o estilo, a forma e o modo concreto de ser Igreja, nas pequenas comunidades, numa articulação entre pastores e fiéis, numa formação operativa para decisões práticas, procurando consensos, através da oração e do discernimento, identificar os problemas, as urgências, as possibilidades e os limites das comunidades a partir de uma leitura espiritual conjunta que é difícil. Não estamos habituados a isso, não temos prática disso. Temos prática de fazer planos e de os executar, mas não temos prática de rezar antes e de pedir ao Espírito Santo que nos ilumine sobre o que é que havemos de fazer em comunidade, o que é que Deus nos pede e qual é a profecia do tempo presente. Isto será um processo lento, com muitas resistências locais (se calhar dentro de nós próprios), mas transversal na horizontalidade da rede de paróquias ou na verticalidade das organizações. Estou convencido de que o futuro da Igreja passa por aqui e isto é um passo do qual não haverá retrocesso porque é uma evidência absoluta. A Igreja é isto: comunhão humana à maneira da comunhão trinitária e comunhão de pessoas corresponsáveis em que todos os cristãos crentes têm a mesma dignidade batismal e têm o direito e o dever de dizer a sua palavra a partir da experiência da sua fé. Têm o direito e o dever de ser ouvidos e de ouvir outros. Escutando tantas vozes, de dentro e de fora, escutando a profecia de crentes e de não crentes, alguma coisa vai acontecer. Fica um problema: qual é o grau de filtragem de todas estas experiências e o que é que chega à Conferência Episcopal a partir das dioceses; o que é que chega à Comissão Sinodal romana a partir das Conferências Episcopais?

O canal pode ter algumas fugas?
O canal pode ter muitas fugas e aquilo que foi dito no processo das bases pode ser diluído ou então apagado nas sucessivas redações da informação até chegar à última etapa do Sínodo romano.

(…)passados 56 anos do Concílio Vaticano II, o atual processo sinodal é uma forma de o celebrarmos, de o reatualizarmos e de ativarmos o seu impulso renovador. Mas é muito mais. Vejo também uma forma de sonharmos a Igreja do futuro

Olha para este Sínodo mais como a concretização do que ainda falta da herança conciliar ou mais como uma iniciativa que leva à renovação da Igreja?
O Sínodo traduz uma fidelidade ao Concílio. Traduz e operacionaliza o Concílio. Operacionaliza ao concretizar aquilo que o Concílio diz, citando São Cipriano de Cartago: que a Igreja é unidade à imagem da unidade do Pai, do Filho, do Espírito Santo. Cada comunidade paroquial, ainda que pequena, as comunidades religiosas, a Igreja locais, na diversidade dos seus membros, idades, condições sociais, biografias existências, carismas, ministérios, são ícone da Santíssima Trindade. Neste sentido, passados 56 anos do Concílio Vaticano II, o atual processo sinodal é uma forma de o celebrarmos, de o reatualizarmos e de ativarmos o seu impulso renovador. Mas é muito mais. Vejo também uma forma de sonharmos a Igreja do futuro, de libertarmos a Palavra, de dizermos o que está mal. E antes de dizermos o que está mal, dizermos e partilharmos a alegria de sermos cristãos, porque é que permanecemos fiéis no belo sentido da palavra, que tentações tivemos de resistir para permanecermos cristãos. Que Palavra é esta, que espaço é este, que casa é esta que nos leva ficar? Que tesouro é este que nos leva a procurar e explorar a sua riqueza? Que fonte é esta que nos leva a continuar a querer beber dela? E por que tantos outros desistiram de beber desta fonte e só encontraram caminhos de secura?
Depois, há uma agenda que é necessário, com coragem e com paciência, ter em conta, com muita verdade e muito realismo. Que tipo de ministério ordenado é que queremos para o futuro? Que tipo de padres? Continuar o modelo clerical do «quero, posso e mando», fazendo tábua rasa do caminho feito nas comunidades, apagando a memória de colegas anteriores, as reformas e iniciativas que se fizeram? Que tipo de formação para os futuros padres para que este modelo clerical seja superado de vez ou debelado, para que possam vir como servidores de comunidades? Sinceramente, pelo que vejo por aí, a seleção de vocações muito monocolores – quase vindas de um único viveiro – está trazendo o restauro de um modelo do padre autoritário, fortemente clerical, qual alter Christus, vestido com tudo o que tem direito, de forma ostensiva, mas não a construir uma Igreja simples, discreta, na comunhão com os homens e mulheres do nosso tempo. Tenho esse receio.
Como também é necessário discutirmos – e não apenas no plano teórico – o lugar da mulher na Igreja. O Papa Francisco tem dado um conjunto de sinais, nomeações de cargos do Vaticano, tradicionalmente exercidos por cardeais, que passam a ser exercidos por mulheres com a sua competência. São sinais que importa também que desçam na cadeia hierárquica e passem pela vida das comunidades paroquiais, pelas cúrias diocesanas, e por aí fora.
A teóloga Cristina Inogés Sanz ainda acrescentou dois aspetos com muita suavidade e ao mesmo tempo com muita frontalidade: já que estamos a falar de uma Igreja sinodal, que lugar para os padres casados secularizados? Não é o tempo de reparar feridas, de criar diálogo, de encontrar formas de valorização e reabilitação do seu ministério? O outro aspeto: como está a acontecer na vida da Igreja atual a inclusão e o reconhecimento da diversidade sexual? Que avanços num respeitoso diálogo com as pessoas em suas biografias existenciais é necessário fazer, quebrando preconceitos e resistências mútuas?

Acha que este processo sinodal também vai ajudar a Igreja Católica a aproximar-se mais das Igrejas irmãs cristãs? Essa caminhada ecuménica que os últimos papas têm tido em especial atenção vai sair valorizada ou pelo contrário?
Vai porque as Igrejas irmãs estão nas mesmas circunstâncias em que nós estamos, sobretudo na Inglaterra e no centro da Europa (Alemanha, Suíça, Áustria, Holanda). O processo de secularização e descristianização que afeta o espaço católico afeta o espaço luterano, evangélico, presbiteriano e das Igrejas da Reforma. Só ganhamos também em nos unirmos uns aos outros, possivelmente até em encontrar estratégias comuns de missão.
A dimensão ecuménica não tem a mesma pertinência entre nós do que tem na Alemanha. O diálogo ecuménico entre nós é relativamente reduzido, enquanto na Alemanha e na Suíça o diálogo ecuménico é urgente, devido à implantação histórica das Igrejas na Reforma, porque há famílias que provêm de tradições diferentes e que vivem essa síntese dentro do próprio ambiente familiar.

Este seu livro que acaba de ser publicado é uma súmula da sua tese de licenciatura ou é uma chave de leitura deste Sínodo?
Não sei se é uma súmula porque resumir 150 páginas em 16 é impossível. Tinha como limite de publicação 45.000 caracteres e foi, literalmente, uma operação dolorosa de desbaste. A certa altura é o autor que se amputa a si próprio no seu próprio texto. Foi um trabalho, progressivamente, de despojamento, de limar, de cortar e de emagrecimento pelo imperativo dos espaços editoriais que são uma tirania tremenda.
Esta pequena publicação é mais aperitivozinho em relação a uma tese complexa, ampla, que fiz em 1997. É uma «brincadeira» que me deu gozo, apesar da parte dolorosa. O texto aqui publicado é o resultado de alguns pontos que isolei e reconfigurei da arquitetura da tese. Por exemplo, a dimensão teológica da comunhão; a experiência do sentir da fé dos crentes; a sinodalidade como expressão e operacionalização da comunhão eclesial; a articulação entre o ministério ordenado e o sacerdócio comum dos fiéis (numa primeira parte mais teológica); na segunda parte mais operativa e prática, reflito sobre a sinodalidade e o exercício da autoridade, procurando superar uma visão do padre monopolizador das decisões, tipicamente autoritário e clerical, para uma liderança em que não se aliena a figura do pastor porque é o último a tomar a decisão e a decisão dele é sempre pessoal, mas a decisão pessoal acontece num processo sinodal, ou seja, ouvindo pareceres, pessoas, competências e respeitando o consenso que esse espaço sinodal lhe deu. Ou seja, não é autoridade decidir uma coisa que não vem do processo de decisão. Depois ainda a sinodalidade e diálogo; a sinodalidade e vida democrática.


Em relação ao que estudei em 1997 e à ampla bibliografia de hoje, o que noto com maior clareza é o lugar e o protagonismo da própria mulher no processo sinodal

Mas, passados estes anos todos, houve a necessidade de atualizar muito daquilo que refletia já em 1997?
Foi, sobretudo, uma atualização bibliográfica, não de conteúdos. Nas últimas duas décadas, sobretudo na última década, ouve mesmo uma explosão na reflexão teológica, canónica, pastoral sobre sinodalidade em língua francesa, espanhola, italiana, inglesa, alemã. Praticamente todas as faculdades de Teologia na última década dedicaram seminários à sinodalidade. Em Itália aparecem publicações como pensar a sinodalidade de uma forma interdisciplinar, reunindo pastoralistas, liturgistas, canonistas, filósofos. Em relação ao que estudei em 1997 e à ampla bibliografia de hoje, o que noto com maior clareza é o lugar e o protagonismo da própria mulher no processo sinodal. O que na altura não era assunto relevante, hoje é assunto incontornável. Do ponto de vista teológico, não encontro novidades. Do ponto de vista prático e organizativo há uma reflexão canónica que está a ser feita pelo canonista belga, Alphonse Borras. Os grandes eclesiólogos, alguns vivos, outros mortos – J. M. Tillard, J. Zizioulas, Hervé Legrand, o próprio Y. Congar –, forneceram as bases eclesiológicas de um pensamento de que agora se está a tirar as consequências práticas.

O padre António Manuel Alves Martins pertence ao presbitério da Diocese do Algarve. Licenciado em Teologia pela Faculdade de Teologia da Universidade Católica em 1987, obteve, em 2003, o doutoramento em Teologia Dogmática, na área da antropologia teológica, pela Faculdade de Teologia da Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma.
Professor na Universidade Católica Portuguesa, é desde julho de 2018 o capelão da capela do Rato, em Lisboa.