Padre Miguel Neto

Na minha última crónica falava da necessidade de um coração crente de viver em verdade. Essa necessidade que eu, enquanto cristão e sacerdote, acho que todos deveríamos ter de fomentar o espírito de honestidade, de justeza, de boa-fé. Mas mais, uma necessidade que vejo como humana, tão humana que se não a sentirmos estamos a afastar-nos daquilo que deveria ser a nossa natureza máxima.

Mas no passado dia 10 de junho, escutando o discurso proferido pelo Jornalista João Miguel Tavares, organizador das cerimónias deste ano a convite do Presidente da República, pensei que teria de levar esta reflexão um pouco mais longe.

Na verdade, como afirmava nessa ocasião esta figura pública, «não é fácil saber porque é que estamos a lutar hoje em dia». Vivemos num estado muito significativo de desesperança. E foram dados inúmeros e muito bem descritos os exemplos que apontou e com os quais foi imediatamente possível estabelecer uma proximidade, um sentido de identificação. E foi esse o centro da minha reflexão: somos verdadeiramente crentes? O que nos faz realizar obras que são boas para nós e para os demais? O que nos motiva, como se costuma dizer?

A resposta simples para o cristão é Deus. Temos Fé. São estes os motores da nossa ação e seriam estas as duas explicações para definir um coração crente. Mas sentiremos mesmo, de verdade e em todos os momentos, a presença desta força maior, este sentimento de pertença? Seremos sempre crentes? E se transpusermos esta análise para o amor ao nosso país, seremos sempre bons portugueses? E se não o sentirmos, não estamos a viver bem a nossa condição de cristãos?

Ter um coração crente é um dom, mas é também um trabalho de construção permanente. Alimentamo-lo com o que vivemos e vemos, com o que sentimos e que nos toca. Um coração crente nunca está igual e nunca reage do mesmo modo. E por ser crente é obrigado a questionar-se, a questionar e a querer respostas, mesmo que saiba que nem tudo é explicável. Um coração crente é “híper mega” sensível e às vezes, antes de chegar ao seu destino, deambula pela dúvida e pela incerteza, pelo individualismo e o autoisolamento, precisamente porque «vemos, ouvimos e lemos. Não podemos ignorar1 ». O cuidado que tem de ter um coração crente é o de evitar aquilo que descrevia, a dado momento, o João Miguel tavares: «A falta de esperança e a desigualdade de oportunidades podem dar origem a uma geração de adultos desencantados, incapazes de acreditar num país meritocrático. Esta perda de esperança aparece depois travestida de lucidez, e rapidamente se transforma numa forma de cinismo. Achamos que temos de ser pessimistas para sermos lúcidos. Que temos de ser desesperançados para sermos realistas. Que temos de ser eternamente desconfiados para não sermos comidos por parvos».

Para o coração crente as coisas não são o que são e ponto. O coração crente pode vaguear por mares grandes, como se diz na nossa terra, mas vislumbra sempre terra, um porto seguro, que são os seus braços, as suas pernas, a sua cabeça, que em conjunto tudo podem construir e tudo podem mudar. E vislumbra outros corações crentes, outros que podem juntar-se nesta tarefa – eu diria mesmo, missão humana – de criar o bem comum. A tal proximidade de que falava no meu anterior texto, a proximidade em que há espaço não somente para o “eu”, mas para o “nós”, potenciadora de comunhão, sinónimo de comunidade, como dizia o Papa Francisco na sua mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais. Uma proximidade capaz de construir comunidades coesas e solidárias. Uma comunidade também descrita pelo João Miguel Tavares: «Para quem ainda acredita numa ideia de comunidade, os portugueses são aqueles que estão ao nosso lado. E isso conta. E conta muito. (…) Todos temos nas nossas famílias histórias destas, de gente banal envolvida em feitos extraordinários. Temos o hábito de levantar a cabeça à procura de grandes exemplos, e nem sempre os encontramos – mas muitas vezes os melhores exemplos estão ao nosso lado, e alguns deles começam em nós mesmos».

É este o lugar e o espaço de ação do coração crente: procura a verdade, cria comunidade, não teme a responsabilidade. É o que se pede aos corações dos políticos que se dizem crentes, como dizia o jornalista no 10 de junho: «Aquilo que se pede aos políticos, sejam eles de esquerda ou de direita, é que nos deem alguma coisa em que acreditar. Que alimentem um sentimento comum de pertença. Que ofereçam um objetivo claro à comunidade que lideram».

E a cada crente, que não teme as suas dúvidas, mas que se ergue sempre na Esperança Maior que é caminho, verdade e vida, só se pede que não tenha medo e que se envolva e que ajude a construir o pais e o mundo que é a cidade de Deus na terra, ou, terminando com o texto que motivou esta reflexão, que não se esqueça que «sobre cada um de nós recai a responsabilidade de construir um país do qual nos possamos orgulhar».

1Cantata da Paz, Sophia de Mello Breyner Anderson