
O nosso país, pelo menos do ponto de vista histórico, sempre foi um multicultural e tolerante para com todas a etnias. Exemplo paradigmático disso é o facto de a escravatura no império português ter sido abolida em 1761 pelo Marques de Pombal, que era, digamos assim, uma espécie de ditador iluminista, embora essa abolição demorasse mais de 100 anos a tornar-se uma prática efetiva. Mais recentemente, mesmo no período forte da guerra colonial, sempre foi reconhecida mutuamente pelas diversas partes (brancos e pretos) uma saudável convivência nas cidades do império africano português. Atualmente, até há pouco tempo e na minha inocência, pensava que não havia racismos na generalidade do povo português. Até porque nunca ninguém questionou a cor de pele de grande parte dos jogadores de futebol ou outros desportistas e nunca vi nenhum adepto não festejar os belíssimos golos de trivela de Ricardo Quaresma, só por ele ser de etnia cigana.
Porém, nos últimos tempos têm havido inúmeras tiradas racistas e xenófobas por gente mediática, nomeadamente a propósito da crise migratória e de refugiados no Mar Mediterrâneo. Essas declarações atingiram o seu auge esta semana com um artigo da Professora Doutora M. Fátima Bonifácio, conhecida historiadora do nosso país, publicada no jornal Público. Nesse artigo, esta catedrática insurge-se relativamente à possibilidade de haver cotas nas universidades e na Assembleia da República para seres humanos de etnia cigana e negra, utilizando como fundamento ideológico a cristandade europeia. No texto em causa, as afirmações racistas são de tal gravidade, que houve imenso barulho mediático a propósito dele. Antes de ir ao essencial da questão, quero dizer que concordo com M. Fátima Bonifácio num aspeto: por princípio sou contra a existência de quaisquer cotas em qualquer organização na sociedade. Sou contra as cotas para as várias etnias, assim como fui contra as cotas na política por causa do sexo, assim como serei um dia contra as cotas para quaisquer outros tipos de discriminação positiva ou negativa na sociedade. As pessoas devem entrar na universidade, ser eleitos deputados ou trabalhar em determinada aérea, não por causa da cor de pele, ascendência, sexo, credo ou outro aspeto, mas somente pelo seu mérito e pelas suas capacidades.
Mas depois há um enorme mar que nos separa, que começa, desde logo, pela noção de cristandade e a utilização da fé cristã para justificar racismo e descriminação. A cristandade europeia e a fé cristã sempre foram justificações pecaminosas e perversas de políticos e governos, sendo sempre prejudicial à Igreja essa utilização. Foi assim em 380 com o Édito de Tessalónica, no qual o Imperador Teodósio utilizou a Igreja para unir um Império Romano já fragmentado. Foi assim em Portugal, com a perseguição aos judeus e instauração da Inquisição. Apesar das resistências e das respostas negativas de vários papas, o Rei D. João III conseguiu, no Pontificado de Paulo III, uma resposta favorável, mas mais vencida do que convencida. E por isso, ainda hoje nós, cristãos católicos, temos o estigma da Inquisição a pairar sobre as nossas cabeças, quando o seu objetivo real e concreto não foi de defesa da fé cristã, mas de opressão politica. E ainda no seculo passado, com a relação entre Igreja Católica e Estado Novo, defendendo este a cristandade, embora não houvesse liberdade da Santa Sé para a escolha dos bispos titulares e múltiplas perseguições a membros do clero sempre que os seus membros se revelavam a favor da liberdade de expressão.
A noção de cristandade sempre foi prejudicial à fé cristã sincera e verdadeira e, ao contrário, favorável à política. Por isso, por favor, Prof. Dra. M. Fátima Bonifácio não fale de cristandade para fazer afirmações racistas e xenófobas, até porque Jesus Cristo afirmou que Deus não faz aceção de pessoas, os discípulos Pedro e Paulo explicaram que o Evangelho é para todos -judeus e gregos, circuncisos e incircuncisos – e, se for à missa neste domingo, vai ver que será um samaritano a ajudar um judeu indefeso e ferido no caminho. Por favor, agradecia que não usasse a fé cristã para excluir ninguém da sua participação política, até porque existem mais negros cristãos do que brancos e de pele vermelha como eu a defender a fé cristã. A cor de pele, a etnia não é reveladora do coração, das capacidades intelectuais, nem da fé professada. E é triste que existam batizados em Cristo e na Sua Palavra a defender tal coisa. Por que Ele inclui, não exclui!