No final no ano apresentam-se tantas estatísticas, de tantas coisas, mas há assuntos em relação aos quis não precisamos de estatísticas para entendermos a sua importância e, sobretudo, o seu peso na nossa sociedade. E nem sempre esses números servem para nos alegrarmos. Já que esse peso é real e dramático. É um peso que nos envergonha a todos e nos deveria obrigar, enquanto cidadãos, contribuintes e, mais que tudo, católicos, a pensar e agir.

É o caso da violência doméstica, que em 2019 apresentou números assustadores: em novembro, mais precisamente até dia 15 e segundo dados apresentados em conferência de Imprensa na Presidência do Conselho de Ministros pela Ministra Mariana Vieira da Silva (artigo do Jornal Público), teriam sido contabilizadas 33 vítimas, números esses que foram atualizados no final do ano (ver peça da SICN), passando a somar-se 35 pessoas, distribuídas do seguinte modo: 27 mulheres, 7 homens e uma criança, todos eles assassinados durante o ano de 2019.

Não é estranho para nenhum de nós que os noticiários se encham destas histórias, que os programas de magazine das tardes e manhãs abordem estas histórias, que as páginas das redes sociais se carreguem destas histórias.

Incomoda-nos, mas não sei até que ponto conseguimos atingir a dimensão desta tragédia, já que ele não implica somente aqueles que são vítimas diretas, mas todos os que estão a seu lado. Numa casa onde alguém exerce violência sobre outro é uma casa onde todos são violentados e impedidos de viver uma vida feliz. Uma família onde ocorre um caso trágico de morte/assassinato é, normalmente, uma família que fica destruída, onde há crianças que ficam sem um dos seus progenitores, ou sem os dois, pois se um morre o outro normalmente acaba por ser detido e ficará ausente por longos anos. Destroem-se relações, destroem-se afetos, impede-se que muitas crianças tenham um desenvolvimento saudável e normal. Há pais que perdem filhos e filhas e ficam destroçados por isso. Todos nós perdemos.

As principais vítimas, como todos sabemos, são as mulheres, ainda tão vulneráveis a pressões financeiras, à ausência de meios para se sustentarem, às pressões sociais para aceitar como normal que numa relação existam um dominador e um dominado. Esta visão distorcida do que deve ser um relacionamento também sabemos que começa muito cedo e que, nos jovens, há muitos casos de namoros onde existe violência, o que permite a perpetuação deste flagelo, que a todos nos deve preocupar.

O Papa Francisco, na missa de Ano Novo abordou, precisamente esta questão, que atinge maioritariamente as mulheres, dizendo: «Toda a violência infligida às mulheres é uma profanação de Deus». E acrescentou, ainda: «O nível da nossa humanidade mede-se pelo modo com que tratamos o corpo de uma mulher».

Que sociedade queremos ser? Que legado queremos deixar às nossas crianças: que não somos capazes de pôr termo a qualquer tipo de exploração, de agressão dentro do espaço que nos é mais importante e no qual aprendemos os valores e desenvolvemos as nossas competências e capacidades, que é a nossa família? Ou, ao invés, que temos capacidade para construir uma sociedade onde todos são tratados com respeito e com justiça, podendo viver com dignidade e sem qualquer tipo de pressão?

Este assunto não é só para os políticos ou para as associações que dão apoio às vítimas. São temas que nos devem interpelar, já que todos conhecemos uma história, um caso, presenciamos um momento em que alguém agrediu alguém. Falemos do assunto. Abordemo-lo em família, para que os nossos jovens possam estar alertas e conscientes daquilo que deve ser a sua conduta. Ajudemos quem precisa. Para que todos os que são vítimas diretas ou indiretas – homens, mulheres e crianças – possam, como dizia o Santo Padre, ser respeitados e honrados. E que este ano de 2020 possa terminar com números mais felizes.