«Porque a alma desse povo /
Vai dentro daquele andor»1.
António Aleixo (V.R.S.A., 1899 – Loulé, 1949)

Foto © David de Freitas (Loulé, 1902 – Évora, 1990)
Festa Grande da Mãe Soberana, Loulé, 1 de Maio de 1938.

O culto a Nossa Senhora da Piedade, Mãe Soberana dos louletanos2, principalmente a parte mais visível desse culto – as festas anuais celebradas em sua honra – constituem, no meu entender e desde há muito tempo, a maior criação popular louletana. Tese, obviamente, que só a mim me vincula. Vamos por partes.

Criação: substantivo feminino, acto ou efeito de criar; acção pela qual Deus dá o ser ao Universo; invenção; obra; produção3.

Criação: porque das quatro grandes manifestações populares que se realizam na cidade de Loulé todos os anos, a Festa da Mãe Soberana é a única manifestação que não tem paralelo em mais nenhuma outra parte do Mundo, justamente porque só existe em Loulé. Senão, vejamos. O modelo que deu origem à primitiva «Batalha das Flores», em 1906, foi importado pelo comerciante louletano de frutos secos, José da Costa Guerreiro (Loulé, 14.11.1885 – Loulé, 31.03.1962), das chamadas «Festas da Primavera», que, anos antes, o mesmo tinha observado em Nice (na França) e em Anvers (na Bélgica), no estrangeiro, mas, também, nas cidades de Lisboa, Porto e Silves4; festivais idênticos ao Festival Med, iniciado em 2004, existem um pouco por todo o Mediterrâneo; e, finalmente, o modelo que inspirou a «Noite Branca», em Loulé, que teve a sua primeira edição em 2007, foi importado da «Noite Branca» de Paris.

Popular: adjectivo qualificativo, respeitante ou pertencente ao povo; usado ou frequente entre o povo; que agrada ao povo; feito para o povo; promovido pelo povo5.

Popular: porque a Festa de Nossa Senhora da Piedade, Mãe Soberana dos louletanos, foi criada e impulsionada pelo povo louletano, e não por qualquer outra entidade ou instituição. Veja-se mais uma vez.

Ao longo da sua multi-secular história a Igreja Católica, e aqui leia-se o clero diocesano, quase sempre olhou com enorme desconfiança, e, por vezes, até mesmo com aversão, a manifestações religiosas praticadas com grande exuberância, gritarias e correrias, só as patrocinando quando estas já se constituíam como um enraizado e inveterado costume local, pelo que pouco terá interferido na imposição do modus operandi de como a Festa é praticada.

Foto © Luís Henrique da Cruz (n. Loulé, 1968)
Festa Grande da Mãe Soberana, Loulé, 4 de Maio de 2014.

Por outro lado, ao longo dos tempos, a classe política local por inúmeras vezes terá tentado controlar e manipular as festividades em honra de Nossa Senhora da Piedade. Veja-se, neste particular, os desacatos políticos verificados entre regeneradores e progressistas, no período da chamada Monarquia Constitucional (como, por exemplo, os ocorridos com o roubo da Imagem no decorrer das Festas de 1893)6. Ou, anos mais tarde, os violentos confrontos protagonizados entre monárquicos e republicanos, durante o chamado período histórico da «República Velha» (como, por exemplo, os ocorridos nas Festas de 1911, 1912, 1913 e 1914), em que houve de tudo um pouco nas Festas da Piedade7. E para todos os gostos e feitios. Apenas uma pequena amostra. Agressões físicas ao delegado do procurador da República, por assistir «coberto» ao sermão no largo da Liberdade (em 1912) e ao presidente da comissão municipal administrativa, pelo mesmo motivo (em 1913). Bengaladas (em 1912). «Vivas à República!» (em 1913). Convocação de uma greve por parte da Associação de Sapateiros de Loulé caso a procissão fosse proibida pelo administrador do concelho (em 1913). Pregação pública do bispo do Algarve após dois anos de forçado exílio da sua diocese (em 1914). Entre muitas outras situações. Porém, segundo pude constatar, as elites políticas locais nunca tentaram impor qualquer nova característica à forma de celebração da Festa.

Então o que nos resta? Resta-nos somente o povo. E, tanto quanto eu posso concluir através das minhas investigações historiográficas, terá sido, justamente, essa enorme massa anónima de devotos populares, campesinos (mormente agricultores) na sua maioria – porque Loulé era um grande centro rural –, que terá criado este modelo de Festa, tão singular, por único, alegre, festivo e emotivo.

Mas que, a quem nos visita pela primeira vez, terei que reconhecer que tal modelo de Festa poderá parecer paradoxal. Porque é que, nós louletanos, perante a maior dor, a dor de uma Mãe que acaba de receber o cadáver do seu amado Filho, nos comportamos desta maneira? Porque é que celebramos a morte com tamanha alegria? A resposta a esta pergunta ficará para um outro artigo.

João Romero Chagas Aleixo
Historiador

1Cf. António Fernando [sic.; correctamente seria Fernandes] ALEIXO, Uma Linda Quadra Glosada à Nossa Senhora da Piedade de Loulé, impresso sobre papel, 1925.

2A denominação popular de «Mãe Soberana» surge plasmada, pela primeira vez em letra de imprensa, na edição do dia 19 de Maio de 1912 do periódico O Algarvio, publicado em São Brás de Alportel. O Algarvio foi um «Semanário Democrático Católico» de curta duração, uma vez que só se publicaram dezoito edições do periódico (de 17.03.1912 a 28.07.1912). Foi sempre um semanário «democrático e católico» com forte influência monárquica e conservadora. Encontrava-se sediado em São Brás de Alportel e era publicado aos Domingos. Ao longo da sua curta existência teve sempre como principal inimigo o também semanário são-brasense Ecos do Sul, este confessadamente republicano, in MESQUITA, José Carlos Vilhena, História da Imprensa do Algarve, volume II, Faro, Comissão de Coordenação da Região do Algarve, 1988, pp. 341-343.

3Cf. COSTA, J. Almeida; MELO, A. Sampaio e, Dicionário da Língua Portuguesa, 7.ª edição, revista e ampliada, Porto, Porto Editora, 1995, p. 500.

4Cf. MARTINS, Luísa Fernanda Guerreiro, «Carnaval Civilizado» de Loulé (1906-1976), Loulé, Câmara Municipal de Loulé, 2015, p. 32.

5Cf. COSTA, J. Almeida; MELO, A. Sampaio e, Dicionário da Língua Portuguesa, 7.ª edição, revista e ampliada, Porto, Porto Editora, 1995, p. 1428.

6Para se ficar a saber mais sobre estes acontecimentos veja-se o seguinte estudo: «O Rapto da Imagem da Piedade (1893)», in ALEIXO, João Romero Chagas, Mãe Soberana. Estudos. Ensaios. Crónicas Loulé, Câmara Municipal de Loulé, 2016, pp. 117-134.

7Para se ficar a saber mais sobre estes acontecimentos veja-se o seguinte estudo: «O Culto durante a Primeira República (1910-1926)», in ALEIXO, João Romero Chagas, Mãe Soberana. Estudos. Ensaios. Crónicas Loulé, Câmara Municipal de Loulé, 2016, pp. 137-168.