3. João de Deus em São Brás de Alportel

Estudaram em São Brás de Alportel os seus irmãos P.e João Gregório Ramos (4.01.1823 – 28.09.1851 e P.e António do Espírito Santo (8.06. 1835).

João de Deus esteve em São Brás de Alportel em 1848, quando recebeu as Ordens Menores na capela do Paço Episcopal. Voltou novamente à aldeia entre julho de 1849 e setembro de 1851, data da abertura do seminário de São Brás de Alportel e a morte do irmão João Gregório Ramos, respetivamente1.

No já referido Almanach de S. Braz d’Alportel, para o ano de 1893, o P.e João Rodrigues de Passos Pinto2 (Pa… Pi…), natural de São Brás de Alportel, num pequeno artigo recheado de pormenores e erudição, fala da obra apostólica do cónego António Caetano da Costa Inglês, tio, e recorda a presença de João de Deus, em São Brás de Alportel.

Afirma que João de Deus veio a São Brás de Alportel quando veio visitar os seus irmãos que estudavam em São Brás de Alportel.

Segundo “Pa. Pi.”, João de Deus esteve na aldeia de São Brás de Alportel «por ocasião das férias grandes de Coimbra e de visita a seus irmãos que estavam aqui estudando para padres, e que a visita, a atendermos a factos sincrónicos, deveria ser em 1853».

Consultando o Livro da Matrícula dos Ordinandos, da Diocese do Algarve, verifica-se que João Gregório Ramos foi ordenado presbítero em 14 de junho de 1851 e faleceu em 28 de setembro do mesmo ano. O P.e António do Espirito Santo só seis anos mais tarde recebeu a Prima Tonsura, em 18 de junho de 1859, e foi ordenado sacerdote em 1861.

O comerciante e publicista, João Manuel Rodrigues Passos, uma das pessoas mais cultas e conceituadas da aldeia são-brasense, refere-se também, à passagem do poeta João de Deus por São Brás e Alportel:

Era então (1853) pároco colado António Caetano da Costa Inglês, cidadão prestimoso, de austeras virtudes, velho e venerando sacerdote, preclaro como poucos do seu tempo e de uma extraordinária dedicação pela ciência e pela religião.

A sua dedicação levou-o a fundar ali um seminário para suprir a falta que fazia o da sede da Diocese, que as lutas entre liberais, e legitimistas tinham obrigado a fechar.

Eram alumnos d’este seminario dois irmãos de João de Deus, o que fez com que este, nas férias, aproveitasse a ocasião de passar alguns meses em sua companhia; e, como os grandes astros, passou deixando vestígios imorrredoiros na memória de todos que o conheceram.

(O Século, n.º 524, de 5.07.1909)

Em São Brás de Alportel, o poeta conheceu na aldeia uma menina chamada Cândida. O P.e João Rodrigues de Passos Pinto ainda conheceu esta Candidinha e, segundo a sua opinião, a menina orgulhava-se dos versos que o poeta lhe declamara:

Ostentava então todo o seu mimo e encanto uma rapariga de nome Candida, ainda hoje viva, mas já estiolada pelo rodar dos tempos; a sua casa era o club da estudantada que ia alli cavaquear com Candida, e recitar-lhes poesias que ella muito apreciava. João de Deus frequentava essa casa, e segundo nos affirma Candida, fez-lhe versos, que, ella nos reproduziu de memoria e que nós, com a devida venia, damos à publicidade:

Alvo lírio, branca pomba
És tão bela em teu alvor
Que não há estrela mais linda
Nem de tão mágico fulgor.
Cândida, mimosa Cândida
És tão linda, meu amor…

Por sua vez, o poeta Bernardo de Passos (1876-1930) recorda a passagem de João de Deus pela aldeia e refere-se às serenatas, na Fonte Santa:

Doces horas de sonho, com sustos e risadas…
Que sentado passei na rocha, à Fonte Santa,
Em qu’apareceu São Brás, segundo a lenda canta,
E onde João de Deus, cismando adormecia…

(«Recordações», Adeus, 1902)

O dr. Virgílio de Passos, primo do poeta Bernardo de Passos, no Diário de Notícias, de 13 de novembro de 1921, refere-se à presença do poeta em São Brás de Alportel e fundamenta-se no citado almanaque.

Em 1929, Antonio Padula, correspondente da Academia das Ciências de Lisboa, no centenário do nascimento do poeta (1830-1930), escreveu nos Atti dell’Accademia Pontaniana3, de Nápoles, um artigo sobre a vida e a obra do grande poeta lírico português. Refere-se ao episódio da Cândida e situa a passagem do poeta, por São Brás de Alportel, em 1851:

Fu nel 1851, ch’egli diede la prima manifestazione del suo talento poetico.

Trovavasi allora nella casa paterna, e volte visitare a S. Braz de Alportel i suoi fratelli Antonio e Josè [João], che sotto la guida d’un dotto canonico [P.e António Caetano da Costa Inglês] facevano gli studi ecclesiastici. In qual comunello viveva una gioninetta gentile e leggiadra la Candida, a cui João de Deus fece alcuni versi, ch’essa, trascorsi molti anni, ripetava ancora a memoria e com orgoglio.

I versi furono pubblicati nel 1866 dal giornale O Eco do Lima, e nel volume Campo de Flores [edição de 1893, organizada por Teófilo Braga], s’intitolano Pomba (Colomba).

In questa poesia iniziale l’autore palesa già una finezza tutta nuova di linguaggio nel rivolgersi alla donna pura, alla donzella, alla colomba, com’egli la chiama, e parlarle della passione, tiranna del cuore umano. Ma la fanciulla, al solo accenno dell’amore si turba, china gli occhi, si chiude come la sensitiva al tocco d’una mano. Il poeta, che s’accingeva a rivelarle il suo affetto, comprende allora, che sarebbe un peccato profanare quel candore angelico, e face. Confiderà gli affanni alla sua bianca confindente, alla luna.

(Padula, 1929, pp. 13-14)

Também Manuel Martinho, no Século Ilustrado, de 18 de fevereiro de 1950, volta ao assunto e limita-se a citar António Padula, embora não faça referência a este autor.

A informação de António Padula coincide com os depoimentos de Cândida e do P.e João Rodrigues de Passos Pinto, inseridas no Almanach de S. Braz d’Alportel, e diverge apenas no ano da última passagem do poeta por São Brás de Alportel. Não foi em 1853 mas em 1851, por ocasião da ordenação sacerdotal do seu irmão João.

O poema dedicado à menina Cândida vem no Campo de Flores4:

Pomba

Casto lírio, branca pomba,
És tão linda em teu alvor!
Não há estrela mais bela
De tão mágico fulgor.
Cândida pomba, alvo lírio,
És tão linda, meu amor!

Dize, donzela, já sentes
Palpitar-te o coração?
Já os teus sonhos, donzela,
Tão sossegados não são?
Sabes já, pobre inocente,
Quanto custa uma paixão?

Mas tu, donzela, descoras,
Pareces desfalecer;
Donzela, não me confias
Segredos do teu sofrer?
Dize, donzela, não dizes,
Tens vergonha de dizer?

“Tenho, sim; ninguém mos sabe;
Só mos tem ouvido a lua,
Quando em céus anuviados
Lá alta noite flutua;
Quando só, de noite, cismo
Em terna imagem…na tua!…”

– Oh, não me iludas, donzela,
Meigo arcanjo do Senhor!
Anjos do céu amor devem
Só do céu ao Criador!
Não mereço, branco lírio,
Teu celeste aroma e cor.

(Campo de Flores, edição de 1893, organizada por Teófilo Braga)

Afonso da Cunha Duarte
1AHDA – Chancelaria, Livro Matriculas dos Ordinandos, 1848, fol. 3v; 1849, fol. 4; 1850, fol. 4v; 1851, fol. 5v; 1859, fol.15; 1860, fol. 16-17; 1861, fol. 18v; cota 373
210.10.1858 – 3.01.1936
3Vol. LIX, 1929
4Em Silves, dedicou o poema «Pressentimento» a José António Garcia Blanco Júnior, filho de uma família abastada e que estudara em Inglaterra. Como gostava de noitadas românticas, com música, teatro e poesia, convidava o poeta para passar tardes e noites em sua casa, quando regressou a casa dos pais e antes de partir para Lisboa. O amigo e admirador foi um mecenas para o poeta e o primeiro editor de Flores do Campo (1870?). O amigo andava de “asa caída” com os amores esquivos da filha do Juiz Conselheiro, Magalhães Barros, e João de Deus, que vivia com muitas necessidades económicas, dedicou-lhe o poema.
Cf Novidades, «Letras e Artes», ano XII, 31.10.1948, n,º 36