O bispo do Algarve enviou, no dia 26 de maio deste ano, na Jornada da Igreja Diocesana, cinco algarvias para participarem em duas missões das irmãs Franciscanas Missionárias de Maria (FMM) em Angola e Moçambique. Duas estão agora em Angola, mas as restantes três já regressaram e explicaram ao Folha do Domingo, em pleno mês de outubro dedicado pela Igreja à causa missionária, porque abdicaram das suas férias laborais de verão.

Lúcia Guerreiro, de 30 anos, esteve, de 29 julho a 31 de agosto, em Angola, em Luanda, M’Banza Congo (capital da província do Zaire) e Muxima (sede do município da Quiçama, na província do Bengo), e foi acolhida nas casas das irmãs FMM (Luanda e M’Banza Congo) e na casa das irmãs Jacintas (Muxima), tendo trabalhado nas escolas das missões daquelas religiosas e num Centro de Acolhimento de órfãos.

Sofia Gonçalves e Julieta Lemos, ambas de 35 anos, estiveram, de 17 de agosto a 16 de setembro, em Moçambique, em Maputo e na Beira, e foram acolhidas nas casas das irmãs FMM naquelas cidades, tendo trabalhado nas valências de centro nutricional, maternidade, centro de saúde e internato para jovens do sexo feminino onde já tinham colaborado outros algarvios em 2010.

FOLHA DO DOMINGO – Já tinha participado noutras experiências de voluntariado?
JL
– Já tínhamos feito voluntariado na casa das irmãs Missionárias da Caridade como preparação para as nossas missões.
SG – Desde adolescente que faço atividades de voluntariado, por exemplo nos Pirilampos (em Albufeira).
LG – Fiz voluntariado na ACASO (Olhão) com idosos e deficientes e na Obra de Nossa Senhora das Candeias (Olhão).

Levaram algum material pedagógico ou lúdico?
SG
– Preocupámo-nos mais em levar coisas para deixar do que coisas nossas. Levámos brinquedos, livros, medicamentos, roupa para crianças e adultos e material que pudéssemos usar no nosso trabalho relacionado com a área da saúde e educação.
JL – Cada uma levou 46 quilos.

Onde arranjaram esse material?
SG
– Através de donativos de muitas pessoas, farmácias e escolas. Levámos também dinheiro que entregámos às irmãs. Houve muita gente a colaborar.
JL – E, lá, fez muita falta.

Qual o objetivo que tinham para esta experiência?
SG
– Não tinha um objetivo. Faz parte do meu ser, sou assim e não consigo sentir-me de outra forma… Por que não ir para fora?
JL – Fazer voluntariado, podemos fazê-lo aqui, perto de casa. No fundo não deixa de ser uma necessidade de querer ajudar os outros e dar o pouco que temos aos outros. Podemos fazê-lo lá fora ou cá. Lá fora é uma experiência diferente porque saímos do nosso conforto e das coisas que nos são familiares.

Faço a pergunta de outra forma… O que é que vos levou a fazer esta experiência?
SG
– Foi o desejo de poder ir para fora conhecer outro contexto, podendo partilhar. Não sei explicar mas sempre quis…
JL – Algo nos chamava para ali e sentimo-nos tão bem que parecia que estávamos em casa.
LG – Numa experiência de voluntariado cá, não abdicamos do nosso conforto, do nosso ambiente. O que nos leva a partir para uma experiência lá fora, com três mudas de roupa, é colocarmo-nos à prova para vermos até que ponto somos capazes de nos darmos. De repente passamos a achar que o saco que levamos com cadernos é bem mais importante do que tudo o que deixamos cá. É uma experiência de vida e um ensinamento que permite conhecermo-nos da forma mais profunda e perceber as opções de outras pessoas. Acabamos por fazer uma opção, ao partir, que outras pessoas já fizeram. Por isso, participar numa experiência destas, ligados a uma congregação missionária, é importante. Quando faço voluntariado cá, disponibilizo um pouco de mim, quando vou em missão para fora disponibilizo-me todo para essa experiência.

Para ir lá para fora é preciso doar-se totalmente?
LG
– Sim.
JL – E não é necessário muito para se viver lá.
LG – Disponibilizas-te para isso.

E cá, é preciso mais para viver?
JL
– Cá não é preciso, mas a sociedade exige-nos mais. Com o pouco, lá, somos mais felizes do que com aqui com tudo.

Aqui a sociedade pressiona e somos obrigados a viver assim?
JL
– Sim. Em África não têm nada quando comparado connosco. O que é que é melhor para as pessoas? Quem é que é mais feliz?

E a que conclusão chegaram?
JL
– À conclusão de que não precisamos de nada do que temos cá para sermos felizes.
LG – Eu não cheguei a essa conclusão… Penso que tudo o que existe na vida é necessário. Só se torna necessário o que conhecemos. Só necessitamos daquilo que conhecemos. Se, em África, conhecerem coisas que nós utilizamos, passam a necessitar delas.

Achas que os africanos não são mais felizes que os europeus?
LG
– São felicidades diferentes. Tem a ver com a cultura, a forma de estar e a maneira de cada povo de viver e ver a vida.

A realidade que encontraram foi aquela que esperavam?
SG
– Estava à espera de pior.
JL – Estarmos no terreno faz-nos ter uma noção mais precisa da realidade. Uma coisa é ouvirmos falar, outra é estarmos lá e vivermos com eles.
LG – Os meios de comunicação não nos transmitem nem metade daquilo que se vive lá. Tive a sensação de que há muitas coisas que nos dão a conhecer propositadamente e que vemos o que eles querem que seja visto.

Eles, quem?
LG
– Quem faz as notícias e as reportagens.

E o que é que se aperceberam lá que não passa cá?
SG, JL e LG
– (Risos)
LG – Tanta coisa… Eu vivi a época de eleições em Angola e, numa semana, a cidade tinha um monumento, na semana seguinte aquele monumento tinha desaparecido. Numa semana, a estrada é de terra batida, na semana seguinte passa a estar alcatroada…

Tudo em função das eleições?
LG
– Tudo em função das eleições (risos).

O povo está mesmo com José Eduardo dos Santos?
LG
– (Silêncio) Penso que é necessário ser essa pessoa a ganhar as eleições.

O que é que fizeram, concretamente, nas vossas missões?
JL
– O nosso trabalho visou, essencialmente, a colaboração no Centro de Nutrição, de manhã, acompanhando mães e filhos (crianças dos 7 meses aos 5 anos), que vão ali para se alimentarem, muitas vulneráveis e órfãs de ambos os pais. Para além de órfãs são doentes com HIV/SIDA, malária, tuberculose…
SG – As mães eram jovens, desde os 18 aos 38 anos, sendo que a maioria tinha cerca de 21 anos. As coisas lá não acontecem como nós queremos, levam muito tempo e três semanas não dá para muito. Tentámos manter os ateliês de leitura, desenho e brincadeiras (com crianças) que já funcionavam. Tentámos trabalhar um pouco na promoção da mulher, na psicoeducação, na área do HIV, cuidados de saúde e higiene.
JL – Procurámos viver com elas e foi a melhor coisa que fizemos. Foi gratificante para nós e para elas. Num mês não dá para fazer nada. Como dizia uma irmã: fomos lá “espreitar”.
SG – De tarde, andávamos muitos quilómetros a pé, para conhecer as casas das famílias com as quais trabalhávamos de manhã. Íamos também conhecer as crianças apadrinhadas no âmbito do projeto Boluka para fazer um levantamento das suas necessidades.
LG – Em Luanda só estive com crianças, na escola da missão, a trabalhar nas competências da iniciação e, com as irmãs, colaborei na preparação de formações. Em M’Banza Congo dei formação a jovens do 5º e 6º ano de uma turma de 82 alunos. Tive algum contacto com as catequeses mas seriam necessários seis meses só para as organizar. À tarde, deslocava-me para uma outra missão de Franciscanos Capuchinhos, que tinham um Centro de Acolhimento de crianças e jovens que apoia órfãos rejeitados pelas famílias – muitos acusados de feitiçaria por ocasião da morte de familiares – para fazer formação bíblica. Dei também apoio a nível escolar.

Quantas crianças fazem parte já do projeto de apadrinhamento?
JL
– Umas oito. Conhecemos mais crianças que gostávamos que alguém as apadrinhasse porque sabemos que precisam de ajuda.
SG – É um valor simbólico para nós [portugueses]. O que gastamos quando vamos jantar com amigos, dá para alimentar uma família inteira durante um mês.
JL – É importante realçar que as pessoas recebem mesmo a ajuda. Testemunhámos a entrega dos alimentos. De manhã, as crianças tomam três refeições – leite às 8h, papa às 10h e sopa ao meio-dia – e, muitas vezes, não tomam mais nenhuma refeição durante o dia. E essa alimentação serve também para as mães.

Como é que está o projeto do Centro de Moagem?
SG
– A moageira já foi adquirida e já temos cerca de 40 por cento do total do projeto. Há uma associação espanhola que estava disposta a doar o restante. Basicamente, o que falta é a mão-de-obra e alguns materiais.
JL – O projeto também já está feito, aprovado e já há terreno. A máquina está parada por falta de um espaço com energia elétrica onde possa ser posta a funcionar.

Em Portugal começámos a ver Angola como terra de oportunidades. Assistimos à vinda de angolanos que vêm em carros de luxo, com carteiras recheadas e dispostos a gastar muito dinheiro. Na última semana, um grupo angolano comprou três grandes jornais nacionais. LG, achas que a vida dos angolanos está a melhorar?
LG
– (Silêncio) Conheci três Luandas diferentes. Existe a Luanda mais antiga que não tem uma estrutura digna, existe uma Luanda nova, lindíssima, que põe o nosso Algarve ou Lisboa a um canto, e uma outra Luanda que está a crescer. Há pessoas com possibilidades e que vêm a Portugal com esse luxo mas que, em Luanda, vivem numa casa que não está rebocada e com chapa de zinco em vez de telhado.
SG – Em Maputo também é assim…
JL – Há um Maputo de hoje e um Maputo dos anos 60/70.
SG – Andam com carros novos, todos bem vestidos, com ouro, mas vivem em casas muito degradadas…
JL – …começam a viver um pouco de aparências. Para as moçambicanas o importante é ter uma capulana nova, ir ao cabeleireiro, arranjar as unhas ou ir a festas mas não se interessam se têm medicamentos para os filhos.

Mas podemos concluir que angolanos e moçambicanos começam, aos poucos, a sair da pobreza?
JL
– Alguns…
LG – Há os excessivamente pobres que não têm como sobreviver, os que têm falta de orientação e gastam tudo (sobretudo em bebida) porque só se preocupam com o dia de hoje, e existem os ricos que vivem bem.

Mas há classe média?
LG
– Há.
SG – Nas grandes cidades, há.
JL – Há bairros que começam a ter melhores condições de água, luz e saneamento básico.

Como foi a vossa relação com as comunidades religiosas que vos acolheram?
JL
– Foi boa. Tentámos integrar-nos…
SG – Tentámos fazer as mesmas atividades que as irmãs.
LG – Foi boa. Vivi com elas a vida do dia-a-dia.

A Igreja católica continua a ter grande importância no apoio às populações?
SG
– Sim.
JL – E as comunidades respeitam muito as irmãs.
LG – A ajuda é a da Igreja Católica, mas existem, cada vez mais, seitas que se estão a infiltrar em Angola e sabem como chamar a população. Muitas pessoas são, depois, extorquidas.

Mas essas seitas também têm serviço social de apoio à população?
SG
– Muito poucas. Mesmo ao nível das ONG’s há muitos projetos e o apoio acaba por ser financeiro e material e não tanto de recursos humanos.
JL – …que tanta falta fazem no terreno.
LG – Ás vezes basta haver alguém responsável para que as coisas aconteçam.

Como está a espiritualidade do povo?
LG
– Há muita espiritualidade e dedicação à Igreja.

Mas é gente com fé genuína ou que a mistura com misticismos?
LG
– Isso faz parte da cultura. As pessoas até têm experiência de fé mas não esquecem a cultura que lhes foi incutida. Cumprem tradições porque acreditam nelas, algumas que, para nós, estão conotadas com espiritismo, feitiçaria, ou outras.

Tanto acreditam nessas coisas como em Jesus Cristo?
LG
– Sim, faz parte.

E a Igreja também está a ajudar a purificar essa fé?
LG
– Sim, está. E, cada vez mais, se aposta na formação das pessoas, que é uma necessidade.

Que perceção têm os africanos da crise que abala a Europa?
SG
– Passa-lhes ao lado!…
LG – …completamente!
SG – Eles não entendem quando lhes dizemos que um padrinho europeu teve de desistir de apoiar uma criança africana por não ter dinheiro.

Que balanço fazem desta experiência?
JL
– Foi muito enriquecedora e considero que foi um presente que Deus me deu. Há muito para fazer.
SG – A vontade era de continuar, pois quando estávamos a sentir-nos integradas é que tivemos de vir embora.
LG – Acho que um mês é o tempo ideal para uma primeira experiência, mas depende do objetivo a que cada um se propõe.

Todas gostavam de voltar?
SG
– Gostava muito de voltar, mas não penso quando.
JL – Quero voltar mas gostava de ir por mais tempo. Pelo menos três ou quatro meses.
LG – Para mim seria muito difícil mais do que um mês por causa da condição profissional. Quero voltar para realizar o que fui lá “espreitar”, nem que seja durante duas semanas. Estamos a projetar montar uma biblioteca de livros escolares para que os alunos possam estudar em casa com condições.

Em que medida é que esta experiência vai servir para enriquecer o vosso contributo com a Igreja do Algarve?
SG
– Acima de tudo servirá para contagiar outras pessoas.
LG – O nosso papel na Igreja tornar-se-á importante porque somos a garantia para os outros de que a sua ajuda chega aos destinatários necessitados.

O sentido de pertença à Igreja e a vossa pratica cristã saíram reforçados com esta experiência?
LG
– Sou uma pessoa completamente integrada na Igreja que tem a noção do que é a experiência de fé, mas o facto de estarmos integradas numa congregação ensina-nos e reforça-nos.
SG e JL – (Acenaram, concordando com LG).

Tiveram algum apoio para além do material?
SG
– A minha missão foi praticamente toda apoiada pela minha paróquia, pelo meu grupo de jovens, pelo projeto Boluka, pelas irmãs FMM e ainda consegui deixar lá dinheiro. Praticamente, só paguei as minhas vacinas.
JL – Tive ajuda das irmãs FMM e do projeto Boluka.
LG – Tive apoio do projeto Boluka e das irmãs FMM.

Que mensagem gostariam de deixar a pessoas que, por ventura, estejam hesitantes em fazer uma experiência destas?
JL
– Que se conheçam muito bem a eles próprios para perceberem se estão preparados para o desafio.
SG – Podem querer muito ir, mas têm de confiar. Têm de ser honestos consigo próprios.
JL – É bom que, antes de ir para fora, se façam experiências cá.