«Não conheço outra festa em que os dois actos estejam tão unidos,
o amor profano seja ao mesmo tempo tão sagrado,
e por isso, tão intenso e tão brilhante»[1].

Lídia Jorge

 

«Paradoxo: s.m. (1563 cf. JBarD) 1 proposição ou opinião contrária à comum <o discurso despertou curiosidade pelos p. apresentados> 2 aparente falta de nexo ou de lógica; contradição <ter um romance numa época de amor livre é um tremendo p.> 3 FIL pensamento, proposição ou argumento que contraria os princípios básicos e gerais que costumam orientar o pensamento humano, ou desafia a opinião consabida, a crença ordinária e compartilhada pela maioria […]»[2].

1. O que é o «Paradoxo Mãesoberaneiro»?

A principal festa religiosa de toda a diocese do Algarve encerra, em sim mesma, uma enorme contradição. Explico. Então a Mãe Soberana dos Louletanos acaba de receber o seu Filho morto nos braços, depois de ter sido humilhado e crucificado pelos romanos, e, mais tarde, descido da cruz por José de Arimateia, e os orgulhosos filhos de Loulé celebram-na, anualmente, desta maneira? Com esta exuberância? Com este contagiante fervor e entusiasmo?

A cena é conhecida. O quadro é dantesco. A Mãe recebe e ampara o corpo do Filho, já cadáver, no seu regaço. Maria chora por dentro e por fora. As lágrimas caem-lhe, aos poucos, pelo rosto. O Amor maternal tem aqui um dos seus maiores estandartes; anos mais tarde, em 1499, fixado magistralmente para a imortalidade pelo escultor italiano Michelangelo (1475-1564). Faltam as palavras. Sobra a emoção. 

Por todo o Mundo católico chora-se a tétrica cena. E o que fazem os louletanos? Celebram, entusiasticamente, o triste quadro. Passeam-nos, à Mãe e ao seu Filho morto, com amor, arte e sentimento, pelas ruas da vila, agora cidade. Conduzem-nos, louca, frenética e triunfalmente, à sua morada. Gritam «Vivas» e mais «Vivas» à sua passagem. Lançam foguetes e morteiros. Choram e riem. Convivem e alegram-se. É verdadeiramente impressionante! Quem se deslocar a Loulé por esses dias ficará, decerto, chocado e aliciado. Com todo este entusiasmo e energia popular. Não muito fácil de se encontrar por terras do Sul de Portugal, como muito bem observou Joaquim Romero Magalhães.

Mas porque é que os louletanos, perante a maior dor, a dor de uma Mãe que acaba de perder o seu Filho, se comportam desta maneira? É esta aparente contradição aquilo que eu denomino por «paradoxo Mãesoberaneiro».  

2. O que representa a Imagem de Nossa Senhora da Piedade?

Nos finais da Baixa Idade Média a figura de Nossa Senhora da Piedade (ou, na sua declinação, de Nossa Senhora das Dores) já constituía um elemento central de devoção. A Imagem representa o sofrimento da Mãe de Cristo após a descida do seu Filho da cruz. A dor maternal, a angústia e o desgosto encontram-se, aqui, bem presentes. A Virgem aparece normalmente representada com um manto, oferecendo uma face serena e de resignação. A sua função era circunscrever a atenção do crente de modo a que através da sua contemplação pudesse meditar nas dores da Virgem. Deste modo, dada a sua eficácia comunicativa e o fácil reconhecimento da cena, a Imagem da Piedade isolou-se das restantes representações do Calvário[3].

No século XIII surgem as primeiras marcas da imagem da Piedade na actual Alemanha. Começando, a partir dessa altura, a expansão desta cena iconográfica para o resto da Europa. Ao longo do século XIV começa a estabelecer-se a voga das Piedades (ou Pietá). E, por volta de 1400, já existem imagens da Piedade, documentadas, em Portugal. Fruto da humanização do culto e da devoção, a Piedade é a imagem mais pungente, e, simultaneamente, das que eram – e ainda continuam a sê-lo –, mais valorizadas no âmbito da piedade popular em toda a Europa[4].

3. Algumas hipóteses interpretativas

Em tempos, nas páginas do periódico A Voz de Loulé, avancei uma possível explicação para o «paradoxo Mãesoberaneiro». Na altura escrevi o seguinte: «A História é antiga. De todos bem conhecida. E tem um final feliz. Repeti-mo-la, representa-mo-la e comemora-mo-la todos os anos. Há quase dois mil anos. Ano após ano. Por alturas da Páscoa. Com as nossas famílias e com os nossos amigos. É o Evangelho aberto representado em plena rua. A catequese popular, posta em prática pelo povo, para serviço de todos. É a religiosidade popular, cujo veículo privilegiado e principal são as tão amadas procissões. Que tantas tradições têm». Para, de seguida, perguntar: «Então, se já conhecemos toda a História de ‘olhos fechados’, sabemos que: o Filho da Senhora Mãe Soberana depois de muito penar, triunfa, morrendo na cruz para nos salvar; e que, passados três dias, ressuscita subindo ‘aos céus onde está sentado à direita do Pai’. Logo, desde há séculos, todos nós sabemos que a História tem um final feliz, com a Redenção do Homem e a Ressurreição do Filho da Senhora Mãe Soberana; outro final, aliás, não seria de esperar, ou a História não tivesse sido escrita por Deus. Então, para quê vivê-la de forma triste?»[5]. Foi o que na altura escrevi. Esta é apenas uma explicação. Haverá decerto outras.

Tamanha idiossincrasia, isto é, celebrar alegremente uma Mãe que acaba de assistir ao martírio e à crucificação do seu Filho, não nos pode deixar indiferentes. Por isso é necessário ir ao encontro de algumas possíveis explicações. Deste modo, penso que a contagiante exuberância com que os louletanos celebram, todos os anos, a sua Mãe Soberana poderá, também ela, estar relacionado com um outro conjunto de factores histórico-sociológicos. Deixo-vos quatro:

a) A «psicologia social do louletano», isto é, um conjunto vasto de características psicológicas e sociológicas que fazem parte da maneira de viver do louletano. Características como, por exemplo, o bairrismo, o tradicionalismo, o ritualismo, o carácter entusiástico e festivo, foram sempre apontadas por todos aqueles, e não foram poucos, que se debruçaram e escreveram sobre a «psicologia social do louletano»[6].

b) A tão necessária galvanização, empolgamento e transmissão de calor humano no sentido de ajudar os Homens do Andor a cumprir a difícil missão que lhes foi confiada. Necessidade prática desde que, durante a década de 1820, se oficializou e cristalizou este modelo de Festa Grande, isto é, com a necessária subida da ladeira do Monte da Piedade, em passo apressado, da Imagem no seu andor. Foi com esse propósito que, nos finais da década de 1860 princípios da década de 1870, o Mestre Manuel Martins Campina (n. Loulé, 29.03.1835), regente da Sociedade Filarmónica União Marçal Pacheco, entre 1866 e 1896, compôs três marchas processionais que foram testadas na ladeira juntamente com os Homens do Andor, por forma a seleccionar qual das três marchas ajudaria melhor a subir a ladeira. Necessitava-se de ritmo e compasso musical, mas também de energia e galvanização. Realizado os testes, foi escolhido, em boa hora escolhido, o popular «passo dobrado»[7] intitulado «Marcha-Hino de Nossa Senhora da Piedade»[8];

c) Os vários fluxos de emigrantes andaluzes que se radicaram em Loulé, ao longo do século XIX e do início do século XX, que ensinaram os louletanos a «passear» a sua Virgem local da mesma forma com que eles «passeiam» as suas Virgens na Andaluzia[9]. Facto único em toda a província do Algarve. A que se deve acrescentar a forte ligação da colónia andaluza radicada na vila de Loulé com a festa, uma vez que, ao longo das duas primeiras décadas do século XX, é comum encontrar comissões promotoras das Festas da Piedade compostas por dois, três ou quatro andaluzes de primeira, segunda e terceira geração radicados em Loulé[10].

d) O constante intercâmbio de louletanos com a região andaluza, nomeadamente as suas duas sociedades filarmónicas, que, já em 1900, se deslocavam até alguns municípios da província de Huelva – Ayamonte para a procissão da Virgen de las Angústias (7 e 8 de Setembro)[11] e a Cartaya para a procissão da Virgen del Rosário (6 a 8 de Outubro)[12] – para abrilhantar as suas romarias e procissões.

Ou, então, o somatório de um pouco de cada uma delas. 

João Romero Chagas Aleixo
Historiador
https://www.cienciavitae.pt/portal/3B19-5F6A-EA39

[1]  Cf. Lídia JORGE, «Sexto Olhar», in Loulé, 5 Olhares, direcção de Miguel Madeira, Loulé, Câmara Municipal de Loulé, 2002, p. 10. 

[2]  Cf. AA. VV., Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Tomo V (Mer-Red), Lisboa, Círculo de Leitores, 2003, p. 2 755.

[3]  Cf. PEREIRA, Paulo, «Nossa Senhora da Piedade», in Decifrar a Arte em Portugal. Volume II, Idade Média, Lisboa, Círculo de Leitores, 2014, p. 178.

[4]  Cf. ibidem, pp. 178-179.

[5]  Cf. João Romero Chagas ALEIXO, «Pôncio Pilatos e a Mãe Soberana», in A Voz de Loulé, n.º 1 809, de 13 de Março de 2015, p. 6.

[6]  Sobre o carácter entusiástico, festivo e bem disposto do louletano veja-se, por exemplo, os seguintes estudos: BRITES, Geraldino da Silva Baltasar, «Alguns Caracteres do Povo Louletano», in Febres Infecciosas. Notas sobre o Concelho de Loulé, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 1914, pp. 180-207; FREITAS, Pedro de, «O bairrismo e a psicologia do louletano», in Quadros de Loulé Antigo – A Alma de Loulé em Livro, 2.ª edição corrigida e aumentada, Lisboa, edição da Câmara Municipal de Loulé, 1980 [1964], pp. 73-78; JORGE, Lídia, «Sexto Olhar», in Loulé, 5 Olhares, direcção de Miguel Madeira, Loulé, Câmara Municipal de Loulé, 2002, pp. 7-10; MAGALHÃES, Joaquim Peixoto, «Os de Loulé são assim», in Gazeta dos Caminhos de Ferro, n.º 1240, Lisboa, 16 de Agosto de 1939, p. 380; MAGALHÃES, Joaquim, «O Algarve e os Algarvios» in Folha do Domingo, ano LXXX, nº 4 148, de 3 de Novembro de 1995, pp. 1-2; MAGALHÃES, Joaquim Romero, «Loulé em vista rasante. Das origens até 1950», in AA.VV., Catálogo da exposição Loulé: Territórios, Memórias, Identidades, coordenação editorial de António Carvalho, Lívia Cristina Coito, Rui Roberto de Almeida e Susana Toureiro, Lisboa, Museu Nacional de Arqueologia, Loulé, Museu Municipal de Loulé, 2017, pp. 28-32; MONTEIRO, Maurício, «A ‘Honrada e Notável’ Vila de Loulé», in O Algarve, n.º 1682, de 23 de Junho de 1940; MONTEIRO, Maurício, «O Bairrismo Louletano», in A Voz de Loulé, n.º 510, de 20 de Março de 1973, p. 6; OLIVEIRA, Ataíde, Monografia do Concelho de Loulé, 3.ª edição, Faro, Algarve em Foco Editora, 1989 [1905], pp. 183-192.

[7]  Estilo musical e dançante, surgido em território espanhol no século XVI. Trata-se de um marcha de compasso 2/4 ou 6/8, caracterizada pelo tempo allegro moderato. Este tipo de marcha é normalmente utilizado na tauromaquia e em desfiles de índole militar.

[8]  Informação prestada pela pianista e professora de música D. ª Célia Vasques Formosinho Romero Magalhães (Loulé, 17.07.1913 – Faro, 12.07.2002).

[9]  Sobre este assunto veja-se o seguinte estudo: ALEIXO, João Romero Chagas, A Migração de Andaluzes para o Algarve (1850-1914): os casos de Loulé e Vila Real de Santo António, tese de Doutoramento em História Contemporânea, Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2022, pp. 169-246. D.O.I.: http://hdl.handle.net/10362/143689

[10]  Refira-se, a título de exemplo, a Comissão Promotora das Festas da Piedade de 1912 que dos cinco membros que a compunham quatro deles eram andaluzes radicados em Loulé: Bartholomeu Rodriguez y Rodrigues, Pablo Garcia Delgado, Pedro Gomes Marques e Ignácio Garcia Alvarez, sendo o restante membro o português António Martins Sancho, in «Festas em Loulé», in O Algarve, n.º 213, de 21 de Abril de 1912, p. 2; O Algarvio, n.º 6, de 28 de Abril de 1912, p. 3.

[11] Cf. O Pregoeiro, n.º 110, de 13 de Setembro de 1900, p. 1.

[12]  Cf. O Pregoeiro, n.º 111, de 4 de Outubro de 1900, p. 2.