O padre António Martins exortou hoje o clero algarvio à esperança, partindo da “literatura como lugar teológico e antropológico”. O sacerdote da Diocese do Algarve, doutorado em Teologia Dogmática, na área da antropologia teológica, valeu-se da obra de dois escritores franceses do século XX – Charles Péguy e Georges Bernanos – para apresentar uma reflexão que não deixou de surpreender os ouvintes.

Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo

Na alocução, que teve lugar em Faro, no Seminário de São José, no âmbito da celebração dia do padroeiro daquela instituição da diocese algarvia, o sacerdote começou por considerar que, “quando uma boa literatura apresenta na ficção ou na poesia a grandeza e a miséria da condição humana, interessa profundamente à pastoral e à reflexão evangélica cristã”.

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O padre António Martins explicou que Péguy, “católico insólito” na sua época devido aos seus “ideais socialistas”, acabou por constituir “o ponto de convergência de uma esperança encarnada no caos da I Guerra Mundial” e “os seus escritos alimentaram a resistência francesa e a resistência católica ao nazismo”.

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Sobre Bernanos, “monárquico convicto” e autor da obra “Diário de um pároco de aldeia”, que embora “também católico” foi inicialmente membro de um movimento laical “quase de extrema direita”, explicou que, “vendo a ferocidade dos bombardeamentos”, “denuncia a cumplicidade da hierarquia espanhola com as atrocidades de Franco” e reconcilia-se com um “catolicismo moderado” para onde “vão convergir todos na resistência francesa ao nazismo”.

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O orador destacou que toda a sua literatura tem não só “um traço profundamente anticlerical, no que o anticlericalismo significa de denuncia de um sistema de poder”, como também o “traço profundamente profético de que a Igreja deve estar ao serviço dos pobres” porque são eles a “figura do Evangelho”. O capelão da capela do Rato, em Lisboa, realçou assim ser por meio de um personagem agnóstico que o romance Bernanos observa que “ou o pobre é honrado ou a Igreja trai o Evangelho” e que esse aspeto evidencia a “oportunidade” de acolher “vozes profundamente criticas dos de fora” que “chamam a atenção para os valores autênticos da tradição evangélica”.

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Por outro lado, o sacerdote disse ser “na beleza teológica e literária do romance de Bernanos que acontece o triunfo da santidade”. “O triunfo da santidade é este mergulho progressivo de um jovem sacerdote que, no limite da falência da sua própria existência, vai-se encontrando com a fragilidade de outros homens e mulheres”, concretizou, acrescentando que “o jovem sacerdote aparece pacificado na aceitação de si mesmo”. “A primeira dimensão da esperança é a reconciliação consigo próprio”, concluiu.

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O padre António Martins destacou ainda que a dimensão “dramática do desespero está profundamente mergulhada na obra” para deixar bem firmado que “o mais alto grau da esperança é o desespero ultrapassado”. “Bernanos integra nesta aventura de um jovem sacerdote a dúvida, a angústia, o desespero, a tentação do suicídio, a luta com a própria morte e a própria doença, o vazio espiritual para reafirmar o dom e a graça de uma esperança que é dom de Deus e a mais alta das graças”, sustentou.

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O sacerdote advertiu o clero algarvio para “o risco de algum discurso simplista acerca da esperança”, garantindo que na sua reflexão procurou deliberadamente evitá-lo. “A esperança é uma virtude, um dom e uma graça que somos chamados a viver e a acolher a partir do nosso percurso existencial”, afirmou, considerando que cada um o vai “reelaborando no encontro com Deus e com a oração”, que disse ser “um dos profundos lugares de esperança, e, ao mesmo tempo também, de combate” com vista à “rendição de se deixar amar como é e de ressuscitar numa dimensão de promessa de futuro”.

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“Quis partilhar convosco, a partir de um romance que é um clássico, como a nossa vida de padres na maior das falências pode ser também a maior das graças”, justificou.

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O Dia do Seminário da Diocese do Algarve foi assinalado ainda com a celebração da Eucaristia na capela da instituição, presidida pelo bispo diocesano, D. Manuel Quintas, seguida de um almoço de confraternização do clero algarvio.

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Padre António Martins defende “caminhos consensuais” que ajudem a promover a esperança