O padre António Martins exortou hoje o clero algarvio à esperança, partindo da “literatura como lugar teológico e antropológico”. O sacerdote da Diocese do Algarve, doutorado em Teologia Dogmática, na área da antropologia teológica, valeu-se da obra de dois escritores franceses do século XX – Charles Péguy e Georges Bernanos – para apresentar uma reflexão que não deixou de surpreender os ouvintes.

Na alocução, que teve lugar em Faro, no Seminário de São José, no âmbito da celebração dia do padroeiro daquela instituição da diocese algarvia, o sacerdote começou por considerar que, “quando uma boa literatura apresenta na ficção ou na poesia a grandeza e a miséria da condição humana, interessa profundamente à pastoral e à reflexão evangélica cristã”.

O padre António Martins explicou que Péguy, “católico insólito” na sua época devido aos seus “ideais socialistas”, acabou por constituir “o ponto de convergência de uma esperança encarnada no caos da I Guerra Mundial” e “os seus escritos alimentaram a resistência francesa e a resistência católica ao nazismo”.

Sobre Bernanos, “monárquico convicto” e autor da obra “Diário de um pároco de aldeia”, que embora “também católico” foi inicialmente membro de um movimento laical “quase de extrema direita”, explicou que, “vendo a ferocidade dos bombardeamentos”, “denuncia a cumplicidade da hierarquia espanhola com as atrocidades de Franco” e reconcilia-se com um “catolicismo moderado” para onde “vão convergir todos na resistência francesa ao nazismo”.

O orador destacou que toda a sua literatura tem não só “um traço profundamente anticlerical, no que o anticlericalismo significa de denuncia de um sistema de poder”, como também o “traço profundamente profético de que a Igreja deve estar ao serviço dos pobres” porque são eles a “figura do Evangelho”. O capelão da capela do Rato, em Lisboa, realçou assim ser por meio de um personagem agnóstico que o romance Bernanos observa que “ou o pobre é honrado ou a Igreja trai o Evangelho” e que esse aspeto evidencia a “oportunidade” de acolher “vozes profundamente criticas dos de fora” que “chamam a atenção para os valores autênticos da tradição evangélica”.

Por outro lado, o sacerdote disse ser “na beleza teológica e literária do romance de Bernanos que acontece o triunfo da santidade”. “O triunfo da santidade é este mergulho progressivo de um jovem sacerdote que, no limite da falência da sua própria existência, vai-se encontrando com a fragilidade de outros homens e mulheres”, concretizou, acrescentando que “o jovem sacerdote aparece pacificado na aceitação de si mesmo”. “A primeira dimensão da esperança é a reconciliação consigo próprio”, concluiu.

O padre António Martins destacou ainda que a dimensão “dramática do desespero está profundamente mergulhada na obra” para deixar bem firmado que “o mais alto grau da esperança é o desespero ultrapassado”. “Bernanos integra nesta aventura de um jovem sacerdote a dúvida, a angústia, o desespero, a tentação do suicídio, a luta com a própria morte e a própria doença, o vazio espiritual para reafirmar o dom e a graça de uma esperança que é dom de Deus e a mais alta das graças”, sustentou.

O sacerdote advertiu o clero algarvio para “o risco de algum discurso simplista acerca da esperança”, garantindo que na sua reflexão procurou deliberadamente evitá-lo. “A esperança é uma virtude, um dom e uma graça que somos chamados a viver e a acolher a partir do nosso percurso existencial”, afirmou, considerando que cada um o vai “reelaborando no encontro com Deus e com a oração”, que disse ser “um dos profundos lugares de esperança, e, ao mesmo tempo também, de combate” com vista à “rendição de se deixar amar como é e de ressuscitar numa dimensão de promessa de futuro”.

“Quis partilhar convosco, a partir de um romance que é um clássico, como a nossa vida de padres na maior das falências pode ser também a maior das graças”, justificou.

O Dia do Seminário da Diocese do Algarve foi assinalado ainda com a celebração da Eucaristia na capela da instituição, presidida pelo bispo diocesano, D. Manuel Quintas, seguida de um almoço de confraternização do clero algarvio.

Padre António Martins defende “caminhos consensuais” que ajudem a promover a esperança