A Diocese do Algarve promoveu, na passada segunda-feira, 20 de março, uma Assembleia Geral do clero com vista à sua formação sobre o tema dos abusos sexuais cometidos contra menores e adultos vulneráveis.

A iniciativa, que teve lugar durante todo o dia no Seminário de São José em Faro, procurou também, conforme explicou o bispo do Algarve na convocatória aos padres e diáconos, significar uma “condenação inequívoca dos abusos cometidos contra menores e adultos vulneráveis”, manifestar a “firme determinação” da Igreja no Algarve “em prevenir e combater esses abusos” e ainda “assumir a responsabilidade pessoal e diocesana na proteção e apoio às vítimas que, porventura, possam existir”.

No encontro, participado, para além do bispo diocesano, pela quase totalidade dos 59 padres e nove diáconos a trabalhar na diocese, D. Manuel Quintas manifestou ainda o desejo de que se possa “criar uma nova sensibilidade a respeito deste tema e, sobretudo, erradicar” o que considerou ser “uma verdadeira chaga no mundo de hoje e na Igreja”.

A primeira parte da formação contou com a intervenção do juiz Pedro Condé Pinto, membro da Comissão de Proteção de Menores da Diocese do Algarve, que apresentou uma exposição do ponto de vista jurídico sobre a temática.

Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo

O magistrado começou por lembrar que “a ideia de uma criança como pessoa por inteiro, titular de direitos que lhe são inerentes, só muito recentemente é que foi adquirida na consciência coletiva das sociedades”. “Só já no início do século XX é que vários movimentos nas sociedades (essencialmente europeias e norte-americanas) começaram a olhar de uma forma diferente para a criança e a reconhecê-la como um ser humano, com a sua individualidade, com uma dignidade própria e dotada de uma dimensão não apenas física, mas também moral e, inclusivamente, espiritual”, explicou, acrescentando que “a grande mudança de paradigma (…) só ocorreu no dia 20 de novembro de 1989” com a aprovação da Convenção sobre os Direitos da Criança pela Assembleia Geral das Nações Unidas, pese embora já em 1982 se tenha verificado “uma grande mudança ao nível das leis penais” em Portugal, com o novo Código Penal. “A partir daquele momento toda a comunidade internacional passou a reconhecer finalmente a criança como uma pessoa na sua plenitude, como um sujeito autónomo e privilegiado de direitos”, sustentou, recordando que Portugal ratificou aquela Convenção a 21 de setembro de 1990.

Neste sentido, Pedro Condé Pinto evidenciou que “o olhar das sociedades sobre aquilo que são os crimes sexuais também sofreu uma longa evolução ao longo do tempo e também o abuso sexual de menores punido pela lei e pelos estados é um fenómeno recente”. “Foi um processo muito lento e longo até que as leis dos vários países reconhecessem o abuso sexual de menores como um crime”, constatou, reconhecendo que “houve um reconhecimento muito tardio do problema dos abusos sexuais praticados em crianças”. O orador lembrou que o Código de 1982 “foi objeto de uma profunda reforma em 1995”, tendo aqueles atos passado a “ser catalogados como crimes contra a liberdade e contra a autodeterminação sexual”.

O juiz elucidou que a lei penal em Portugal estabelece uma diferença entre os tipos de crimes sexuais praticados contra crianças menores de 14 anos e os cometidos contra jovens que tenham entre 14 e 18 anos e enumerou as condutas que são punidas por lei e as penas correspondentes. Sobre estas explicou que “têm no Direito português uma finalidade de prevenção”, mas visam “também satisfazer necessidades de prevenção especial: criar condições para que o condenado sinta na sua vida alguma restrição que o conduza a refletir sobre a conduta que teve contrária à ordem jurídica, ao direito, aos valores, mas também permita que inicie e concretize um processo de ressocialização”, que disse ser “o fim último da pena”.

O magistrado explicou que no caso dos “crimes públicos”, “pela sua gravidade, o legislador considera que é irrelevante a apresentação de queixa para que o processo crime se inicie” e que “os crimes sexuais contra crianças são desse tipo de crimes”, sendo que os que obrigam a apresentação de queixa para haver investigação são os que se referem a prática de atos sexuais com adolescentes, a não ser que do crime resulte a morte ou o suicídio da vítima.

Sobre a questão que se coloca também sobre os abusos sexuais ocorridos no seio da Igreja de saber se a denúncia é obrigatória, o juiz clarificou que “não há na lei portuguesa nenhum crime de encobrimento”. “A conduta de não denunciar um crime sexual de que se tenha conhecimento não é em si mesma um crime”, afirmou, acrescentando que a exceção são “pessoas que exercem funções públicas ou de interesse público”. “O único caso em que, rigorosamente, um clérigo pode ter o dever legal de denúncia seria um caso em que esse padre estivesse também a exercer funções numa instituição social ou que visasse um fim público, por exemplo num caso de uma IPSS”, clarificou.

Aquele membro da Comissão de Proteção de Menores da Diocese do Algarve explicou ainda os trâmites dos processos, que os danos dos crimes praticados contra crianças são sobretudo não patrimoniais e elencou os que “a psicologia tem apontado como consequências” daqueles crimes. “Se as crianças tiverem de ser sujeitas a tratamentos médicos ou de caráter psicológico ou qualquer tipo de acompanhamento terapêutico, o agressor, desde que condenado, é obrigado a suportar os custos desses tratamentos”, assegurou, referindo que “os danos não patrimoniais em geral não são suscetíveis de serem avaliados em dinheiro” e que a “grande finalidade” no que respeita a esses danos é a “compensação pecuniária”.

O magistrado, que explicou haver ainda “normas específicas” para os crimes cometidos sobre adultos vulneráveis, lembrou que “no Direito de todos os países da Europa continental, quem responde pela obrigação de indemnizar é quem cometeu o crime”. “Nos EUA não é assim e no Reino Unido também não. Há tipos de crime que, em função do caso concreto, se considera, do ponto de vista civil, que não foi só responsável o agente, mas que pode haver entidades sobre as quais recaia um dever de indemnizar”.

“No direito português, do ponto de vista estritamente legal, quem responde pela obrigação de indemnizar é o agente do crime, a pessoa que o cometeu. A responsabilização de uma instituição só seria enquadrável se a instituição tivesse um concreto dever de guarda, vigilância ou proteção da criança (em substituição dos seus progenitores), podendo ser responsabilizada pela violação desse dever de cuidado”, completou.

Diocese do Algarve elucidou clero sobre “gravidade que a Igreja passou a atribuir ao crime de abuso sexual de menores”