Vasco Figueirinha, de 25 anos, entrou com quase 18 anos para o Seminário, seguindo logo para Évora para fazer a mesma formação.
Concluída a licenciatura, realizaram ambos o mestrado integrado no curso, o primeiro em História da Igreja e o segundo em Sagrada Escritura e vão agora ser ordenados sacerdotes para a Igreja algarvia numa celebração que se realizará no próximo sábado (8 de dezembro).
Nas vésperas da ordenação, Folha do Domingo foi tentar perceber que avaliação fazem do percurso vocacional e quais as expetativas presentes e futuras de cada um dos diáconos.
Miguel Ângelo Pereira
– Falar do percurso vocacional nem sempre é fácil porque todo ele está marcado por uma série de sinais que Deus vai deixando na nossa vida. Não é que constranjam a liberdade. Antes pelo contrário, vão mostrando qual o caminho verdadeiro da felicidade. Foi preciso purificar muita coisa na minha vida para perceber, com a sinceridade do coração, o que é que Deus queria para mim. Efetivamente, foi um percurso com altos e baixos. Nem sempre foi tudo um «mar de rosas», mas as pequenas grandes coisas que Deus foi deixando na minha vida, essas sim, marcaram-me profundamente e foram testemunhando o plano de amor e de salvação que Ele tem para mim e que eu aceitei.Vasco Figueirinha – O percurso vocacional teve os seus altos e baixos. Foi, sobretudo, um caminhar com o Senhor. Quantas vezes ia, por exemplo, ao sacrário para perceber aquilo que Deus queria da minha vida e também para que Ele me guiasse, principalmente porque a vida no Seminário não é fácil. Eu vinha de um ambiente diferente… Sendo filho único, tinha os miminhos todos e chego ao Seminário e sou confrontado com uma nova realidade. Acabo por apanhar esse pequenino choque, mas claro que isso tudo me ajudou a crescer, a consolidar a caminhada vocacional e me fez perceber que é o Senhor quem conduz a minha vida. Uma coisa que aprendi nesta caminhada foi a confiança e perseverança em Deus e à missão que Ele quer que realizemos. Tudo o resto é relativo. Tudo o resto devemos relativizar e aprender a não dar tanta importância para que nos centremos no essencial. A experiência do Seminário foi uma experiência muito positiva, apesar dos percalços que acontecem e que a vida de comunidade traz sempre. Por isso, o balanço é bastante positivo.
Deus revelou-se num determinado da vossa caminhada ou foi-se revelando?
VF – Há aqueles momentos em que sentimos mais a presença de Deus. No meu caso, o maior momento em que Deus se revelou na minha vida foi uma Semana Santa que vivi em Faro, antes de entrar para o Seminário. Para além dos encontros de discernimento vocacional, ver um sacerdote que se sentiu mal numa Missa Crismal foi uma ocasião para pensar: «Meu Deus, os sacerdotes um dia também acabam… Quem virá a seguir?». Também me tocou a morte do padre [Jerónimo] Gomes, ainda antes dessa altura. E houve ainda acontecimentos ao longo da vida através dos quais o Senhor se ia manifestando e eu ia vendo que o Senhor ia querendo este projeto para mim. Curiosamente, é nas alturas em que estamos a sofrer mais que o Senhor intervém e nos dá sinais. Por exemplo, um outro sinal que serviu para confirmar foi esta enxurrada de falecimentos de sacerdotes que tivemos agora. Particularmente, a morte do padre Gilberto, que era uma pessoa ainda nova, abalou-me e fez-me interrogar bastante.
MAP – Efetivamente houve pequenos sinais que Deus fez na minha vida, no entanto, acho que foram, sobretudo, as vicissitudes e as dificuldades do povo de Deus que mais me interpelaram. Pensava eu que o chamamento que Deus me fazia era outro e Deus mostrou-me este caminho. O sim – embora sejam apenas três letras – vai-se dando em cada dia e em cada momento ao longo da vida, como em qualquer outro chamamento. Por exemplo, na vida matrimonial também há um sim que se tem que dar constantemente.
Miguel, fizeste um interregno na tua caminhada vocacional que é frequente no percurso daqueles que são chamados a esta vocação. Foi também um momento de paragem e de reflexão para ti?
MAP – Foi uma paragem forçada porque fui convidado a sair do Seminário. Entrei naquela fase crítica da vida, com 16, 17 e 18 anos. Era muito imberbe e precisava de amadurecer. Quando sai do Seminário pensava não voltar, tanto que comecei a construir vida cá fora. Primeiro, entrei na universidade e frequentei o curso de Estudos Portugueses, tinha uma namorada espetacular, mas faltava algo na minha vida. Depois comecei a trabalhar mas compreendi que a minha vida era um pouco como a de Jonas – estava a esconder-me do que Deus tinha para mim – e descobri que só através da total doação de mim mesmo é que consigo sentir-me plenamente realizado.
Pediram agora para serem ordenados sacerdotes. Entendem, por isso, que este é o momento certo para que isso aconteça.
MAP – Sem dúvida. Pelo menos na minha vida não há momento mais belo e mais propício.
Hoje é mais difícil ser padre?
MAP – Sem dúvida.
Porquê?
MAP – Por várias razões. Primeiro, por causa das mentalidades. A nível social, as mentalidades que existem para com a Igreja e, no concreto, para com os sacerdotes, é bem diferente. Em segundo, porque as próprias pessoas, dado várias circunstâncias da própria vida da sociedade – a revolução sexual, a questão das mulheres –, encaram aquilo que é a vida consagrada a Deus (para muita gente, uma entidade que não se vê) como uma perda de tempo. Depois, porque também hoje, segundo os números, os padres são cada vez menos e cada vez mais chamados a atuar em situações concretas da vida das pessoas, o que já não se compadece com estarmos fechados dentro de uma igreja como acontecia há 50/60 anos atrás, em que a vida pastoral se resumia à administração de sacramentos.
VF – Não sei se poderei dizer que é mais difícil ser padre nesta época ou noutra…
…mais difícil também no sentido de ser mais exigente.
VF – Talvez… Mas eu não tenho termo de comparação. Estou a viver o meu tempo e só posso analisar tendo presente o meu tempo, ainda que possa ter acesso a outros dados históricos. Creio que os outros tempos tinham as suas dificuldades. Se noutros tempos podia haver maior número de sacerdotes e a exigência poderia ser menor? Não sei. Mais do que me prender ao facto de ser mais fácil ou mais difícil ser sacerdote hoje, devo, sim, perceber o que é que Deus quer na minha vida e, sobretudo, ser perseverante, confiar e perceber qual o plano que Deus quer para mim e para o povo que Ele quer que eu sirva. Com o resto não vale a pena estar a perder tempo.
Sentiram sempre o apoio da família ao longo deste percurso?
VF – Sim.
MAP – Sim, sem dúvida.
E foi fundamental, calculo…
VF – Claro.
MAP – Claro.
Vasco, no teu caso foi uma experiência diferente por seres filho único…
VF – Exato. O primeiro dia foi um bocadinho de choque para os meus pais, mas eles sempre aceitaram e sempre me apoiaram incondicionalmente. E eles próprios têm feito uma caminhada muito bonita comigo. E por isso, também nesse aspeto, tenho de agradecer ao Senhor a graça de me ter dado os pais que me deu.
Um filho que decide abraçar esta vocação e entrar para o Seminário leva também os pais a fazer uma caminhada?
VF – Exatamente. E eu sinto isso. Ainda que nem toda a minha família (para além dos meus pais) me tenha apoiado ou aceitado a minha decisão, noto que, de certa maneira, eles vão também fazendo a sua caminhada e que o Senhor também se serve de mim e deste chamamento para a sua conversão. E isto é que é de uma beleza extraordinária, ver como Deus, através de um filho que chama ao sacerdócio, vai fazendo com que os seus familiares se vão, eles próprios, questionando e até mudando alguns preconceitos e mentalidades que tinham.
MAP – Os meus pais sempre me apoiaram. No dia em que eu terminei a minha relação de namoro para voltar para o Seminário, recordo-me do que me disse o meu pai: «Tu vais tanto para o Seminário como eu vou para a universidade». O que é certo é que hoje brinco com ele, dizendo-lhe: «Olha que eu estou quase a ser ordenado padre. Já estás na universidade?». Principalmente para a minha mãe foi muito importante. Ela teve um problema grave de saúde num determinado momento da sua vida, cumpriu um grande sonho ao receber o sacramento do batismo e o facto de eu estar no Seminário foi também motivo de aproximação. Mas também houve membros da minha família que nem sempre acreditaram e que, só há cerca de três meses, me disseram: «agora acredito».
Como é que pensam exercer o ministério? Sentem-se vocacionados para alguma área especial? Qual será a vossa prioridade pastoral?
MAP – Gosto muito do Hino do Comum dos Pastores. Se conseguir tê-lo como programa de vida e vivê-lo, então estarei a cumprir uma boa missão. Estamos a viver os 50 anos do Concilio Vaticano II que primou por um aspeto fundamental: a opção preferencial pelos pobres. Independentemente de olhar para todos, gostaria de olhar de forma mais carinhosa para com esses.
VF – O aspeto pelo qual sinto mais aptidão é a música, mas, à parte disso, é importante o ministério da Palavra, da pregação e também a dimensão da oração e da adoração eucarística porque, se não confiamos no Espírito Santo para o nosso ministério, tudo o resto cai por terra. Podemos cair num funcionalismo que não é de todo aquilo que se pretende da nossa vocação. Fazemos o que fazemos porque é o Senhor quem nos manda, portanto temos de alimentar a nossa relação com Ele e levar também outros a alimentar a sua relação. A ter alguma prioridade pastoral seria a pregação e a oração para levar outros a redescobrirem essa dimensão que, creio, às vezes está um bocadinho posta em segundo plano. Às vezes corremos o risco de celebrar os sacramentos sem os viver e é necessário redescobrir esta dimensão da oração, não só nos sacramentos mas também na dimensão pessoal.
A dimensão do testemunho é exigida a todos os cristãos e, de forma particular, também aos sacerdotes. Isso poderá ser um peso? Como pensam ser imagem real, viva e transparente de Cristo?
VF – Segundo o evangelho!
MAP – Costumo dizer que o caminho da santidade contempla uma dicotomia: é o mais fácil de se pôr em prática, mas o mais difícil de se cumprir. Esse caminho consiste em viver na minha vida aquilo que Jesus viveu e agir como Ele agiria nas diversas circunstâncias. Ser padre e ser rosto de Cristo para os outros é muito exigente porque é uma grande responsabilidade que temos. Se conseguir viver aquilo que anunciar da Palavra de Deus, então a minha própria vida será imagem de Cristo. Mas até conseguir chegar a esse topo, há muito trabalho pela frente.
VF – Para conseguirmos testemunhar temos de nos virar para aquilo que pode converter o nosso coração. É tão simples mas ao mesmo tempo tão complicado porque, por vezes, a dureza do nosso coração prevalece. Para poder ser testemunha tenho de me confiar ao Senhor e a dimensão da oração e da meditação na Palavra de Deus tem de estar sempre presente na minha vida. Como é que eu posso querer ser testemunha de Jesus Cristo se não O conheço, se não vivo d’Ele e como Ele? Como é que eu posso ser essa transparência de Jesus para os outros se não me deixo inundar por Ele? Primeiro, temos de nos converter a nós e depois anunciar Jesus Cristo.
Esta diminuição do número de vocações e a escassez de sacerdotes que se vive atualmente leva muitas vezes a um ativismo excessivo dos que restam para responder a todo o trabalho pastoral que há para fazer. Acham que este é um dos principais riscos na vida de um sacerdote?
MAP – Não só o ativismo mas também o funcionalismo, que o Vasco abordou. Há o perigo de se chegar sem ter tido tempo para a oração e para a meditação da Palavra [de Deus]. Há que saber dosear as coisas e deixar um tempo íntimo e fundamental de namoro com Deus.
VF – Penso que essa questão da diminuição dos sacerdotes acaba por se tornar, um pouco, uma falsa questão. Se acreditamos que é o Espírito Santo que guia a Igreja, se acreditamos que Jesus não falha, como é que podemos duvidar que Ele dê à sua Igreja os sacerdotes de que ela precisa. Se temos problemas de consciência por não haver número suficiente de sacerdotes, a solução passa por rezar mais.
Mas achas que neste momento a Igreja tem o número de sacerdotes de que precisa?
VF – É aquilo que Deus concede e aquilo que faz falta. Não posto de dizer que são muitos ou poucos. Simplesmente, compete-me fazer aquilo que o Senhor me chama a fazer. Não é no número de sacerdotes que está o essencial. Os apóstolos eram 12 e, no entanto, não foi o número que os impediu de anunciar a Boa Nova.
Passa então por reorganizar o trabalho e estruturar as coisas de outra forma?
VF – Talvez, talvez. E, sobretudo, deixarmo-nos guiar pelo Espírito Santo.
Temos vindo a assistir a uma envolvência crescente, por parte dos cristãos algarvios, em relação às vocações sacerdotais e, particularmente, em relação às ordenações. A vossa ordenação também tem suscitado nas pessoas um sentimento de muita alegria e entusiasmo. Como é que vivem esta realidade?
VF – Sinto que as pessoas nos acarinham muito e, sobretudo, esperam muito de nós.
E isso é um peso?
VF – É uma alegria e também um peso, no sentido que nos obriga a olhar a enorme responsabilidade que temos perante as pessoas e perante Deus. A partir de agora não seremos somente o Vasco e o Miguel, vamos ser representantes de Deus na terra e isso faz toda a diferença e obriga-nos a ter uma postura diferente. E as pessoas esperam isso. Por outro lado, na sociedade é curioso ver como as pessoas, às vezes, agem com desprezo, com gozo… Mas isso acaba por nos estimular porque nos dá uma razão acrescida para continuar.
MAP – Subscrevo o que disse o Vasco. É uma enorme responsabilidade, é uma enorme missão, mas, sobretudo, é um enorme desafio o que Jesus Cristo que nos propõe hoje. E isso dá-nos o estímulo que é fundamental para a caminhada. Vale a pena seguir em frente.
Que mensagem gostariam de deixar àqueles que, por ventura, possam estar a interrogar-se se esta será a sua vocação?
MAP – A esses deixo-lhes uma questão: numa sociedade que aposta tanto no viver o momento com a adrenalina ao máximo, de forma radical, poderá haver coisa mais radical do que viver o evangelho e deixar tudo para trás para seguir a pessoa de Jesus Cristo?
VF – Muitos jovens já experimentaram tudo na vida e nem por isso sentem que são felizes. Nota-se que hoje, na sociedade, há um vazio que é preciso preencher. É o vazio de Deus. A esses que estão em dúvida, dizer que o Senhor conta com eles para que possam ser testemunhas d’Ele porque o mundo precisa de reencontrar o sentido que perdeu para a vida, precisa de testemunhas e de cristãos audazes que sejam capazes de seguir em frente e anunciar Jesus Cristo, sem medo e sem tabus, a propósito e a despropósito, como diria São Paulo. Os profetas também tiveram dúvidas, mas como dizia Jeremias, «dominaste-me Senhor e foi tua a vitória».