© Samuel Mendonça
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Em abril de 2002, no alvor de um novo milénio, D. José Policarpo concedia ao Folha do Domingo uma entrevista onde abordava os desafios que, no seu entender, se colocavam à Igreja perante essa realidade. É essa conversa, publicada na edição em papel (na altura a única) de 19 de abril de 2002, que hoje – o dia seguinte ao do seu falecimento –, aqui recuperamos na edição online.

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“O grande desafio para a Igreja é uma pastoral testemunhal de coerência com a nossa fé”

D. José da Cruz Policarpo, Cardeal-Patriarca de Lisboa, em entrevista à Folha do Domingo, fala dos desafios que se colocam Igreja chegada ao III milénio e comenta o papel dos leigos nesses novos tempos, nomeadamente o da juventude.

Recém reeleito Presidente da Conferência Episcopal Portuguesa refere-se também, entre outros assuntos, ao peso da tradição da Igreja e indica ainda o caminho a seguir, quando assistimos à diminuição do número de sacerdotes, para contrariar o perigo de supervalorizar o sacerdócio baptismal em detrimento do sacerdócio ministerial. Texto e fotos por Samuel Mendonça.

Folha do Domingo – Chegada ao terceiro milénio, quais são, no seu entender, os grandes desafios que se colocam à Igreja?

D. JOSE POLICARPO – Todos (risos). Ser Igreja num mundo complicado, num mundo com características evolutivas muito sérias num diálogo com as culturas. Penso que o grande desafio é o homem no seu realismo e a globalização trouxe à nossa visão aquilo que é o homem concreto. Penso que o grande desafio para a Igreja é uma pastoral testemunhal de coerência com a nossa fé.

P – Os leigos terão então um papel fundamental nesse desafio?

R – Todos os cristãos. Todos os cristãos convictos. Quem tiver fé que a testemunhe. Gente com pouca fé terá pouco a fazer nesta missão.

P – Os jovens terão também uma acção fundamental nesses novos tempos?

R – Os jovens são destinatários e agentes. Penso que antes de mais são destinatários, na medida em que são uma geração de futuro, mas são também os grandes obreiros da evangelização dos jovens e das outras pessoas. O testemunho de um jovem tem um impacto muito grande sobre as pessoas em geral.

P – Os nossos cristãos vivem hoje a sua vida segundo uma consciência adquirida do sentido do seu Baptismo, assumido como verdadeira fonte de vida?

R – Há de tudo, não se pode julgar ninguém. Eu penso que sim. A nossa Igreja hoje tem núcleos muito vivos de gente empenhada, e até, às vezes, silenciosamente. As coisas mais bonitas da Igreja não são aquelas que vêm nos jornais porque a santidade é discreta. Há também uma grande quantidade de gente que foi tocada pelo Cristianismo mas que não descobriu que vale a pena ir mais longe, que não descobriu a beleza da santidade.

P – Os cristãos têm hoje uma maior consciência da sua condição de leigos, consagrados ou ministros sagrados?

R – A resposta é a mesma, há de tudo. Há muitos que sim, mas é um processo em curso. Faz parte da pedagogia da Igreja uma envolvência, sobretudo para as pessoas descobrirem que ser cristão não é uma questão pessoal para resolver o seu “problemazinho”, mas uma questão comunitária para viver em comunhão e assumir uma responsabilidade comunitária diante do mundo que é o nosso.

P – O peso da tradição da Igreja não constitui por vezes um entrave à evolução, à mudança, ao rejuvenescimento?

R – A verdadeira tradição que é esta memória viva que nós recebemos do passado é, sempre foi e há-de continuar a ser a grande força mobilizadora. Não nos podemos esquecer que recebemos o evangelho por tradição. O evangelho faz parte da parte da nossa tradição. Agora a tradição que é o peso institucional e organizativo da Igreja pode levar a que isso aconteça, sobretudo se a falta deste dinamismo carismático torna a Igreja numa espécie de estrutura meio burocrática. No entanto, também o peso de que muitas vezes se fala, do Vaticano e da sua organização, tem este risco mas tem também o valor da unidade mundial. Não sei como seria se fosse de outra maneira e sabe muito bem quando se vai à China ou à América Latina sentir a mesma realidade. O problema todo está sempre dentro de nós, está no espírito com que vivemos estas coisas.

P – Quando atravessamos tempos em que assistimos à diminuição do número de sacerdotes e surge o risco de supervalorizar o sacerdócio baptismal, comum a todos os fiéis, em detrimento do sacerdócio ministerial, como pode a Igreja fazer frente a esta situação?

R – Com uma pastoral da fé. A catequese terá de ser uma caminhada de experiência e haver depois uma pastoral de proposta vocacional muito séria. E isto aplica-se a todas as vocações. Queixamo-nos muitas vezes de falta de vocações sacerdotais mas eu costumo dizer muitas vezes, meio a brincar mas muito a sério, que também há falta de vocações para o matrimónio. O que a maior parte das pessoas fazem é casar-se umas com as outras, agora descobrir o casamento como caminho de santidade é quase tão raro como uma vocação para uma especial consagração. E nós temos de fazer uma pastoral de descoberta da vocação cristã. É que hoje estragou-se a palavra vocação. Quando um jovem fala de vocação é a pensar naquilo que ele quer ser e o conceito cristão de vocação não é esse mas o que é que Deus quer dele, se Deus tem um plano para ele. Temos de dizer isto em todos os tons e aplicado a todas as circunstâncias.

© Samuel Mendonça
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D. José Policarpo sobre a Palestina: “Aquela terra tem um mistério…”

No campo da actualidade, o Cardeal-Patriarca comenta a escalada de violência vivida ultimamente no Médio Oriente e o esforço de implementação do diálogo inter-religioso e ecuménico feito pela Igreja.

Folha do Domingo – Que comentário lhe merece a escalada de violência vivida ultimamente na Terra Santa?

D. José Policarpo – É uma tristeza muito grande. É, há muito tempo, uma terra conflituosa. Esperemos que haja uma espiral de bom senso para não deixar dramatizar ainda mais a situação porque aquela terra tem um mistério…

P – Também nesta área os cristãos têm a missão de continuar a implementar o diálogo inter-religioso e ecuménico…

R – Sobretudo um respeito muito sincero e esse respeito é tanto maior quanto nós descobrirmos aquilo que é mesmo o dom da nossa fé. Enfraquecemo-nos se vamos para o diálogo inter-religioso a pensar que a nossa fé é igual à deles. O diálogo inter-religioso é tão mais fecundo quanto eu tenho dentro do meu coração aquele sentido de que Nosso Senhor Jesus Cristo é único.

P – Como avalia o esforço feito pela Igreja neste sentido?

R – O mundo é uma aldeia global. As grandes religiões são conhecidas e o caminho para a fé, para a justiça e para a paz tem de ser feito com a convergência de tudo aquilo que pode ajudar.

P – O Santo Padre tem dado bons exemplos disso…

R – Tem dado um sentido muito grande a isso.