
Este novo ano pastoral da Igreja Católica algarvia será marcado pelo estudo da Dei Verbum e o padre Mário de Sousa apresentou no passado sábado, na Assembleia Diocesana em Quarteira, uma conferência (áudio abaixo) acerca daquela constituição dogmática sobre a palavra de Deus, explicando que o documento trouxe um “novo conceito de revelação”.
“A Dei Verbum fala da revelação como o ato comunicativo de Deus. Este conceito provocou um efeito positivo e rompeu muitas barreiras, mas nós ainda estamos a sentir na «boca» o «sabor» de anos e anos em que a revelação de Deus foi entendida como uma espécie de verdades que era necessário acatar”, considerou o sacerdote, lembrando que antes do concílio a “adesão não era a Deus, mas às verdades reveladas”. “E a fé cristã deixou de ser tanto uma relação pessoal com Alguém que nos ama para ser uma revelação com um conjunto de ideias. E, muitas vezes, isto fez com que o Cristianismo deixasse de ser fé para ser ideologia. Até se dizia dar doutrina, e não, fazer catequese. O que está por detrás desta conceção não se tratava da relação pessoal com Deus, mas de cumprir preceitos”, lamentou no encontro que teve lugar no salão da igreja de São Pedro do Mar.

O sacerdote explicou igualmente que a constituição dogmática resultou da reflexão sobre três problemas: a relação entre revelação, tradição e Sagrada Escritura, a inspiração divina desta e a sua interpretação e o seu uso e leitura.
O padre Mário de Sousa começou por explicar que se procurava “saber se a tradição da Igreja tinha igual autoridade à da [Sagrada] Escritura para transmitir a revelação”. “Este era um dos temas difíceis no diálogo entre protestantes e católicos”, lembrou, frisando que “os católicos acreditam que o Espírito Santo, que inspirou a Bíblia, é o mesmo que continua a inspirar o seu sentido mais profundo que se expressa na tradição e no magistério, ou seja, no ensinamento dos pastores da comunidade cristã”. “A própria Bíblia é fruto da tradição, de um processo de transmissão, amadurecimento, inspiração e vivência da Palavra que depois foi posta então por escrito”, evidenciou.

O sacerdote destacou que os padres conciliares quiseram sublinhar que “revelação e tradição são dois elementos indissociáveis” porque “a tradição antecede, acompanha e sucede a Escritura”. Neste sentido frisou que “a Escritura não se interessa tanto pelos acontecimentos em si mesmos” e que, por isso, a Bíblia “não é um jornal”, nem um “livro científico”. “O que a Bíblia nos transmite, sem erros, não são as verdades científicas, mas as verdades de salvação. Por causa deste perigo de passar da linguagem figurada para a real, a Dei Verbum evitou as analogias antigas. Já não fala de escritores sagrados como secretários, mas limitou-se a afirmar que Deus serviu-se de homens na posse das suas faculdades e capacidades, ou seja, agiu neles e por meio deles para falar à maneira humana”, explicou.
O segundo problema tinha a ver com a questão da “inspiração e da inerrância”, ou seja, da “verdade”. “Durante muito tempo considerou-se que o autor sagrado era uma espécie de secretário do Espírito Santo e que limitar-se-ia a escrever o que este lhe ia ditando”, recordou o conferencista, acrescentando que “os estudiosos aperceberam-se que os autores usaram técnicas literárias conhecidas no seu tempo, como é o caso dos géneros literários”.
O padre Mário de Sousa referiu ainda que “a Dei Verbum vem reafirmar a continuidade do Antigo Testamento no Novo Testamento” e assegurar que a “plenitude da revelação” é Jesus.

O sacerdote aludiu ainda aos “frutos das determinações teológicas e pastorais” da Dei Verbum que “não se fizeram esperar e, em grande parte, aconteceram em simbiose com a renovação da liturgia”, levando a Igreja Católica, pouco a pouco, a sentir a “necessidade de revisitar a [Sagrada] Escritura” como já os protestantes faziam. A tradução da Bíblia, a homilia, as celebrações da Palavra, a catequese, a leitura orante da Palavra, e os grupos bíblicos ou de aprofundamento da fé foram alguns desses frutos enumerados, evidenciando a importância das traduções das escrituras serem feitas dos textos originais, isto é, do hebraico e do grego, porque “uma tradução deficiente faz perder o sentido do texto”.
O padre Mário de Sousa defendeu ainda que a formação bíblica é “fundamental” para a criação de uma “espiritualidade bíblica”. “Uma aproximação à Bíblia sem uma preocupação racional, sem o estudo, dá fundamentalismos”, advertiu.
Conferência do padre Mário de Sousa: