O Papa Francisco publicou hoje a sua nova encíclica ‘Fratelli Tutti’, que tem como temática central a fraternidade e amizade social, propondo esta última como alternativa ao individualismo e indiferença.

“Habituamo-nos a olhar para o outro lado, passar à margem, ignorar as situações até elas nos caírem diretamente em cima”, escreve, num texto divulgado pelo Vaticano.

O documento, primeiro do género em cinco anos, critica a tentação de “desinteressar-se dos outros, especialmente dos mais frágeis”.

“Digamos que crescemos em muitos aspetos, mas somos analfabetos no acompanhar, cuidar e sustentar os mais frágeis e vulneráveis das nossas sociedades desenvolvidas”, refere Francisco.

“Assaltam uma pessoa na rua e muitos fogem, como se não tivessem visto nada”, lamenta.

O Papa fala numa “indiferença acomodada, fria e globalizada”, que afeta a humanidade e leva a “formas de individualismo sem conteúdo” alimentadas pela “necessidade de consumir sem limites”.

“Não será este individualismo indiferente e desalmado em que caímos resultado também da preguiça de buscar os valores mais altos, que estão para além das necessidades momentâneas?”, questiona.

Francisco diz que este individualismo é incapaz de gerar liberdade ou igualdade, propondo o conceito de “amizade social”, um “amor que se estende para além das fronteiras”, como condição para “uma verdadeira abertura universal”.

“Nenhum Estado nacional isolado é capaz de garantir o bem comum da própria população”, escreve.

O Papa desafia cada ser humano a assumir a sua vocação de “cidadão do próprio país e do mundo inteiro, construtor dum novo vínculo social”.

A nova encíclica dedica um capítulo à parábola do Bom Samaritano, analisando as personagens propostas por Jesus Cristo: “Com quem te identificas? É uma pergunta sem rodeios, direta e determinante: a qual deles te assemelhas?”, pergunta o Papa.

Francisco assinala que o universal não deve ser “domínio homogéneo, uniforme e padronizado duma única forma cultural imperante”, sugerindo uma inovação a “partir dos valores da sua própria cultura”.

“A busca duma falsa tolerância deve dar lugar ao realismo dialogante por parte de quem pensa que deve ser fiel aos seus princípios, mas reconhecendo que o outro também tem o direito de procurar ser fiel aos dele”, precisa o Papa na encíclica ‘Fratelli Tutti’.

A encíclica é o grau máximo das cartas que um Papa escreve e a expressão ‘Fratelli Tutti ‘ (todos irmãos) remete para os escritos de São Francisco de Assis, o religioso que inspirou o pontífice argentino na escolha do seu nome.

As duas anteriores encíclicas do atual pontificado foram a ‘Lumen Fidei’ (A luz da Fé), de 2013, que recolhe reflexões de Bento XVI, Papa emérito; e a ‘Laudato Si’, de 2015, sobre a ecologia integral.

Fundo mundial contra a fome, financiado por atuais despesas militares

O Papa Francisco propõe na nova encíclica a criação de um fundo mundial contra a fome, que seria financiado pelas atuais despesas militares.

“Com o dinheiro usado em armas e noutras despesas militares, constituamos um Fundo mundial, para acabar de vez com a fome e para o desenvolvimento dos países mais pobres”, refere.

Francisco propõe um ideal de não-violência, particularmente em relação à guerra e à pena de morte, considerando que estas “nada mais fazem que acrescentar novos fatores de destruição no tecido da sociedade nacional e mundial”.

O documento recorda que o Catecismo da Igreja Católica fala da possibilidade duma “legítima defesa por meio da força militar”, mas refere que tem havido uma “interpretação demasiado larga deste possível direito”.

“Conferiu-se à guerra um poder destrutivo incontrolável, que atinge muitos civis inocentes”, observa o Papa.

Para Francisco, “hoje é muito difícil sustentar os critérios racionais amadurecidos noutros séculos para falar duma possível ‘guerra’, pedindo que a discussão deixe o plano teórico e se centre nos “civis massacrados, como ‘danos colaterais’”.

“Às vezes deixa-me triste o facto de, apesar de estar dotada de tais motivações, a Igreja ter demorado tanto tempo a condenar energicamente a escravatura e várias formas de violência. Hoje, com o desenvolvimento da espiritualidade e da teologia, não temos desculpas”, aponta.

Quanto à pena de morte, a nova encíclica sublinha que “a vingança não resolve nada” e que as decisões judiciais devem procurar “evitar novos crimes e preservar o bem comum”.

“Hoje, afirmamos com clareza que ‘a pena de morte é inadmissível’ e a Igreja compromete-se decididamente a propor que seja abolida em todo o mundo”, assume, condenando em particular “as chamadas execuções extrajudiciais ou extralegais”.

Em 2018, o Papa Francisco ordenou a alteração do número do Catecismo da Igreja Católica relativo à pena de morte, cuja nova redação sublinha a rejeição total desta prática.

A ‘Fratelli Tutti’ saúda os 75 anos de existência das Nações Unidas e a experiência dos primeiros 20 anos deste milénio para sublinhar que “a plena aplicação das normas internacionais é realmente eficaz e que a sua inobservância é nociva”.

Francisco destaca que a reconciliação exige memória e que há acontecimentos – como o Holocausto ou os bombardeamentos atómicos de Hiroxima e Nagasáqui – que não se podem esquecer.

“Também não devemos esquecer as perseguições, o comércio dos escravos e os massacres étnicos que se verificaram e verificam em vários países, e tantos outros factos históricos que nos fazem envergonhar de sermos humanos”, prossegue.

O Papa realça que os cristãos são chamados a amar todos, incluindo os seus inimigos, mas precisa que “amar um opressor não significa consentir que continue a ser tal nem levá-lo a pensar que é aceitável o que faz”.

Reforço da posição católica sobre «função social da propriedade»

O Papa Francisco reforçou a posição católica sobre a “função social” da propriedade.

“A tradição cristã nunca reconheceu como absoluto ou intocável o direito à propriedade privada, e salientou a função social de qualquer forma de propriedade privada”, indica.

Citando João Paulo II, Paulo VI e o Compêndio da Doutrina Social da Igreja, Francisco propõe uma “reflexão sobre o destino comum dos bens criados”.

“É possível desejar um planeta que garanta terra, teto e trabalho para todos. Este é o verdadeiro caminho da paz, e não a estratégia insensata e míope de semear medo e desconfiança perante ameaças externas”, sublinha.

O Papa destaca que o direito à propriedade privada só pode ser considerado como “um direito natural secundário e derivado do princípio do destino universal dos bens criados”, pedindo consequências concretas deste conceito.

“A sociedade mundial tem graves carências estruturais que não se resolvem com remendos ou soluções rápidas meramente ocasionais”, assinala.

Francisco diz que não é possível aceitar que a Economia “assuma o poder real do Estado”, denunciando sistemas corruptos que impedem o desenvolvimento digno dos povos.

A reflexão aborda ainda o problema da dívida externa, indicado que, “em muitos casos, o pagamento da dívida não só não favorece o desenvolvimento, mas limita-o e condiciona-o intensamente”.

Francisco pede políticas que apontem ao desenvolvimento solidário de todos os povos, defendendo que “os bens dum território não devem ser negados a uma pessoa necessitada que provenha doutro lugar”.

“Se todo o ser humano é meu irmão ou minha irmã e se, na realidade, o mundo pertence a todos, não importa se alguém nasceu aqui ou vive fora dos confins do seu próprio país”, indica.

O Papa pede o uso do conceito de “cidadania plena” em vez do recurso “discriminatório do termo minorias, que traz consigo as sementes de se sentir isolado e da inferioridade”.

A nova encíclica ‘Fratelli Tutti’ defende um pacto social “realista e inclusivo” e um “pacto cultura”, que respeite e assuma as diversas visões do mundo, as culturas e os estilos de vida que coexistem na sociedade.

Papel das religiões em favor da fraternidade humana

O Papa Francisco destaca o papel das religiões na construção da fraternidade e na rejeição do extremismo.

“As religiões nunca incitam à guerra e não solicitam sentimentos de ódio, hostilidade, extremismo nem convidam à violência ou ao derramamento de sangue”, escreve.

“Declaramos adotar a cultura do diálogo como caminho; a colaboração comum como conduta; o conhecimento mútuo como método e critério”, refere.

Francisco recorda a visita do santo de Assis, há 800 anos, ao Sultão Malik-al-Kamil, no Egito, em busca da paz.

“É impressionante que São Francisco apele a evitar todas as formas de agressão ou contendas e também a viver uma ‘submissão’ humilde e fraterna, mesmo com quem não partilhasse a sua fé”, indica.

O Papa fala da importância de refletir sobre “o sentido social da existência, a dimensão fraterna da espiritualidade, a convicção sobre a dignidade inalienável de cada pessoa e as motivações para amar e acolher a todos”.

“Não se pode admitir que, no debate público, só tenham voz os poderosos e os cientistas. Deve haver um lugar para a reflexão que provém de um fundo religioso que recolhe séculos de experiência e sabedoria”, observa.

O Papa apela a uma Igreja que “serve, que sai de casa, que sai dos seus templos, que sai das suas sacristias, para acompanhar a vida, sustentar a esperança, ser sinal de unidade”.

O texto pede ainda que seja garantida liberdade de culto aos cristãos e apresenta a liberdade religiosa, “para os crentes de todas as religiões”, como um direito humano fundamental.

Além de vários Papas e pensadores cristãos, Francisco cita a Eneida, Cícero, os filósofos Gabriel Marcel e Paul Ricoeur, o jesuíta Jaime Hoyos Vásquez ou o sociólogo Georg Simmel, entre outros.

“Neste espaço de reflexão sobre a fraternidade universal, senti-me motivado especialmente por São Francisco de Assis e também por outros irmãos que não são católicos: Martin Luther King, Desmond Tutu, Mahatma Gandhi e muitos outros”, explica.

A última personalidade citada ‘e o beato Carlos de Foucauld (1858-1916), religioso católico, pelo seu ideal de “identificação com os últimos, os mais abandonados no interior do deserto africano”.

“Somente identificando-se com os últimos é que chegou a ser irmão de todos. Que Deus inspire este ideal a cada um de nós”, deseja Francisco.

Entre os episcopados católicos citados está a Conferência Episcopal Portuguesa, com a sua carta de 2003, Responsabilidade solidária pelo bem comum, à imagem do que tinha acontecido na encíclica Laudato Si’.

com Ecclesia