Em entrevista ao jornal da Diocese de Viana do Castelo, divulgada na passada quinta-feira, o padre Mário de Sousa, coordenador da Comissão da Tradução da Bíblia, explicou que o objetivo daquele trabalho moroso é “ter uma tradução que pudesse ser usada não apenas na liturgia, mas em todos os âmbitos da vida eclesial”, seja num documento oficial da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) ou numa catequese de adultos.

Ao ‘Notícias de Viana’, o sacerdote da Diocese do Algarve acrescenta que “o texto bíblico que é usado na liturgia, não só não abrange toda a Bíblia (havendo, por isso, muitos textos por traduzir), como era necessário fazer-lhe uma revisão que colmatasse algumas omissões, corrigisse imprecisões ou mesmo erros de tradução”.

“Tendo isto em conta, assim como a recomendação da Santa Sé para que haja uma tradução dos textos litúrgicos que abranja toda a Sagrada Escritura, a CEP considerou ser preferível realizar uma tradução de raiz, presidida por dois critérios fundamentais: primeiro, que seja o mais literal possível, no sentido de transmitir o que os textos exprimem nas línguas originais (hebraico, aramaico e grego), o que implica conhecer não apenas essas línguas, como o mundo social, religioso, cultural, etc., que elas expressam, tornando-o presente na tradução; segundo, que se tenha em conta a finalidade sobretudo litúrgica e pastoral da tradução, produzindo, por isso, um texto que seja compreensível e adequado à proclamação de viva voz”, prosseguiu.

O biblista considerou que “conseguir conjugar estes dois critérios”, é um dos grandes desafios do trabalho e lembra que “uma tradução literal e em português escorreito, de boa compreensão e proclamação, não é de fácil concretização” porque “os livros bíblicos foram escritos numa cultura distante e muito diferente” da atual.

“O nosso modo de pensar e, consequentemente, de falar e de escrever, é em grande parte fruto da filosofia grega e, sobretudo, do Racionalismo e do Iluminismo. Usamos sobretudo a linguagem descritiva, informativa. O mundo bíblico, pelo contrário, até pelas realidades transcendentes que expressa, utiliza sobretudo uma linguagem evocativa, cheia de símbolos e metáforas que, embora partindo da experiência concreta, remete para uma outra realidade que a transcende”, sustenta, assegurando que “conservar esta riqueza metafórica e, ao mesmo tempo, fazê-lo de modo a ser facilmente percetível, exige um trabalho cuidadoso”. “Quando não é possível, a edição recorre às notas de rodapé, ou para apresentar a tradução literal, ou para explicar o sentido do texto”, acrescenta.

Lembrando que a tradução “é fruto do trabalho de mais de quarenta biblistas portugueses e dos países de língua oficial portuguesa (tendo em conta que posteriormente a tradução será usada também nesses países, com exceção do Brasil)”, o sacerdote considera que “isto é uma grande mais-valia”, mas “por outro lado cria dificuldades de harmonização, porque pessoas diferentes traduzem necessariamente de formas diferentes”.

“Então, há um segundo trabalho, o das subcomissões científicas (uma para o Antigo Testamento e outra para o Novo), que passa pela revisão da tradução e pela harmonização no sentido de, por exemplo em Paulo, a mesma palavra ser traduzida preferencialmente da mesma maneira em todas as suas cartas, ou de, nos evangelhos sinóticos, os textos idênticos serem traduzidos de forma idêntica”, elucida, acrescentando que “isto permite a quem não tem acesso às línguas originais perceber, pela tradução, que no original se trata de palavras ou expressões iguais”.

Para além da tradução, já editada, “Os quatro Evangelhos e os Salmos”, há vários livros do Antigo e Novo Testamento já revistos e outros em processo de revisão.

Natural de Vila Real de Santo António, o padre Mário de Sousa, de 50 anos, é formado em Teologia pelo Instituto Superior de Teologia de Évora, onde é professor de Novo Testamento. É ainda licenciado em Teologia pela Universidade Católica de Lisboa, em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma e doutorado em Teologia Bíblica pela Universidade Gregoriana de Roma.

É diretor do Centro de Estudos e Formação de Leigos do Algarve, presidente Associação Bíblica Portuguesa desde 2017 e foi nomeado em setembro passado pela CEP, coordenador da Comissão da Tradução da Bíblia, em substituição de D. Anacleto Oliveira, bispo da Viana do Castelo, falecido naquele mês.

Na Diocese do Algarve é ainda pároco na igreja matriz de Portimão. Entre outras publicações é autor de “Introdução ao Evangelho de S. João”, “«Para que também vós acrediteis». Estudo exegético-teológico de Jo 19,31-37” e “Os encontros de Jesus no Evangelho de São João”.