Sacerdote da Diocese do Algarve obteve 20 valores na defesa da dissertação na Universidade Católica Portuguesa
O padre Miguel Ângelo Pereira desenvolveu uma investigação para a sua tese de mestrado na qual defende que a fonte primitiva de onde provêm os quatro textos do Evangelho cristão possa ser um texto judeocristão, escrito em hebraico e não em grego ou aramaico, conforme advogavam as teorias apresentadas até agora.
A defesa da dissertação do mestrado integrado em Teologia do sacerdote da Diocese do Algarve, ordenado em 2012, sobre o tema “O Ms. 2498 da Magdalene’s Library: Um Targum Judeocristão?”, ocorreu no passado dia 29 de novembro na Universidade Católica Portuguesa (UCP) de Lisboa e obteve 20 valores.
A investigação académica do padre Miguel Ângelo começou há cerca de 10 anos ainda no Instituto Superior de Teologia de Évora, mas o «processo arqueológico de escavação das raízes» dos escritos sagrados teve origem logo num seminário sobre os Evangelhos apócrifos em que participou em 2010, orientado pelo frei Isidro Lamelas, doutorado em Teologia Patrística pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, que veio a ser o orientador do mestrado.
A partir daí, o sacerdote da Igreja do Algarve ganhou gosto pela investigação no âmbito desta área da história do Cristianismo designada como Judeocristianismo e continuou, a título pessoal, a investir nela. Esse estudo levou-o a contactar com vários documentos, dos quais selecionou três “pelas suas particularidades”. “Dois deles contactaram diretamente com Evangelhos judeocristãos – concretamente o Evangelho dos Nazarenos e o Evangelho dos Hebreus – e um terceiro que não menciona esse contato, mas que, pelas suas particularidades, perceciona uma relação direta com esses documentos. O desenvolvimento da pesquisa levou a que se desse mais atenção a este último documento, o manuscrito 2498 da Magdalene’s Library de Cambridge”, explica o autor ao Folha do Domingo.
O padre Miguel Ângelo, que para além da análise histórica do movimento judeocristão, destaca o estudo histórico, filológico, linguístico e teológico deste último texto que garante ser “um documento único”. “Há fortes probabilidades de a origem deste documento corresponder a um targum [tradução para os judeus dos textos sagrados]. Poderemos, provavelmente, estar a contactar com um targum judeocristão a uma fonte Q (quelle), originária, em hebraico”, sustenta, lembrando que os targumim [plural de targum] escreviam-se em aramaico e que a sua investigação “abre portas a todo um outro campo de estudo para origem da fonte primordial de onde vem os quatro Evangelhos” do Cristianismo.
O sacerdote defende, portanto, que terá sido escrito um primeiro texto em hebraico (e não em aramaico ou grego) que é a “hipotética fonte Q (quelle)”, criada “a partir dos ditos dos antigos padres da Igreja e das memórias daquilo que o povo judeu tinha ouvido o Senhor narrar”. Por isso, o autor considera também que a sua tese “vai abrir portas à possibilidade de que a pregação aos circuncisos [realizada por Tiago e Pedro] seja mais conhecida”, lembrando: “sabe-se muito sobre a pregação aos gentios [protagonizada por Paulo], mas pouco sobre a pregação aos da circuncisão”.
“O povo judeu vai depois, na continuidade da sua fé em Jesus, criar em torno desse texto sagrado uma série de géneros literários diferentes: o género targúmico, que era costume fazer-se em torno de um texto considerado sagrado que é em hebraico, e outros que têm um caráter teológico mais aprofundado, por exemplo aqueles que estão vinculados a um género midráshico, como é o caso dos Evangelho dos Hebreus”, prossegue.
O padre Miguel Ângelo realça que, no âmbito da “afinidade literária” entre os três textos que elegeu, “a primeira coisa que saltou à vista é que, apesar de serem de períodos cronológicos diferentes e de locais diferentes, partilham entre si uma variedade enorme de aspetos que estão presentes enquanto tradições, mas que estão ausentes dos textos canónicos dos Evangelhos”.
O investigador relata que outra das finalidades do trabalho foi constatar que “os nazarenos – que provavelmente são o grupo que fugiu para Pella, na Transjordânia, e que são descendentes diretos da geração apostólica – vão ver-se no meio de dois mundos: por um lado, um Cristianismo cada vez mais consolidado e que detinha nas suas fileiras gente com relevo na história e na vida do Império Romano e, por outro lado, o próprio Judaísmo rabínico que se começara a cristalizar após a destruição do templo”. “Esta cristalização vai levar à compilação da mishná, que é o primeiro texto considerado sagrado da tradição oral judaica”, acrescenta, complementando que no século VII os judeocristãos “são totalmente assimilados com as invasões árabes pelas Igrejas no oriente e pelo Islamismo crescente”. “Não deixa de ser belo como, sendo judeus, sempre se mantiveram fiéis àquilo que receberam dos seus pais. Não viram necessidade de criar uma nova religião”, ressalva o sacerdote, sublinhando o “profundo amor que este grupo de judeus, mesmo a custo da sua própria vida, demonstrou ao seu mestre”.
Nesta sua investigação – que contou com colaboração do padre José António Gonçalves, formado em Literaturas Clássicas e professor de Latim, “para uma maior acuracidade na tradução” daquela língua – o padre Miguel Ângelo admite ainda outra mais-valia. “Pode colaborar bastante no diálogo interreligioso com os nossos irmãos judeus, procurando o que mais nos aproxima, as nossas raízes, as raízes da nossa própria fé, do que propriamente o afastamento”, identifica, considerando que o estudo ajuda a combater “um fenómeno que grassou desde os primórdios do Cristianismo e que, infelizmente, desembocou no antissemitismo, aquele supersecionismo cristão que, infelizmente, é exatamente pensar que o antigo Israel ficou vazio, sem nada para oferecer em detrimento do novo Israel”. “Eles são os nossos irmãos mais velhos. Gestos tão simples como o da imposição das mãos, que recebemos na ordenação, já se faziam nesse tempo. Era assim que também se transmitia a autoridade para a pregação da palavra de Deus àqueles que eram investidos já no tempo de Jesus, segundo as escolas teológicas da época”, sustenta.
O sacerdote, natural de Tavira, que se mostrou surpreendido com a nota obtida, foi convidado pela UCP a publicar a dissertação e a dar continuidade à investigação com vista a um eventual doutoramento. Na defesa da tese, para além do orientador do mestrado, esteve também presente o professor José Carlos Miranda, da UCP de Braga, e a professora Luísa Almendra, doutora em Teologia Bíblica pela UCP de Lisboa na área dos Escritos Sapienciais.