Natural de Paderne, Élia Gomes tem acumulado experiências de voluntariado missionário de longa duração em África e regressou no início deste mês àquele continente para, pelo menos, mais dois anos de trabalho.

A enfermeira aposentada, que trabalhou durante mais de 30 anos no hospital de Faro, voltou agora à República Centro-Africana, onde já tinha estado entre 2011 e 2016, para continuar a colaboração que, para além da saúde, tem forte componente na área da educação e da formação humana.
O país é palco de um conflito armado promovido pelos que lutam para dominar as minas de ouro, diamante e cobre e para controlar as rotas de transumância que entram no país desde o Chade.
A algarvia, ligada aos Leigos Missionários Combonianos, que presenciou em 2012 o surgimento do derradeiro capítulo que insiste em perpetuar a ameaça ao futuro do país, regressou agora à missão em Mongoumba, na Diocese de Mbaïki com um território de 20 mil quilómetros quadrados e cerca de 300 mil habitantes, dos quais só 20% são católicos, e que dista da capital Bangui aproximadamente 150 quilómetros que se percorrem entre quatro e seis horas de viagem por caminhos de terra batida.
Sem cuidados de saúde comparáveis com os existentes na Europa, Mongoumba conta apenas com “um enfermeiro que é o diretor do Centro de Saúde e enfermeiros-socorristas que têm seis meses de formação”, conta Élia Gomes ao Folha do Domingo, referindo as carências em termos de tratamentos e exames. “Não há hemogramas ou raio X. Tem de se ir a Bangui”, conta.
Para além de escolas, a congregação comboniana coordena ali um centro de reabilitação que presta cuidados de saúde e apoio a idosos e a crianças mal nutridas, mas o principal trabalho dos missionários prende-se com o apoio e promoção do povo pigmeu “Aka”, uma minoria fortemente marginalizada pelo resto da população centro-africana. “O pigmeu em África não é considerado pessoa. Vivem essencialmente nas florestas e os não-pigmeus utilizam-nos como mão de obra barata”, denuncia Élia Gomes, garantindo que aquelas pessoas “às vezes chegavam ao fim do dia [de trabalho] e recebiam um cigarro e um copo de vinho de palma” como pagamento.
“Não estamos a tentar mudar culturas, mas a tentar mudar um pouco a mentalidade no respeito pelos outros”, ressalva, acrescentando que a sensibilização tem de ser feita “dos dois lados: do lado do pigmeu como do não-pigmeu”. “Tentamos que os pigmeus vão à escola porque é a maneira de lhes abrir um pouco os horizontes para começarem a perceber que também têm direitos”, prossegue, acrescentando um testemunho. “O André [pigmeu], quando lá cheguei, tinha feito o 6º ano e tinha de ir para a sede de distrito para continuar a estudar. Fez o 11º ano e não chegou a fazer o 12º ano, mas para nós é uma vitória”, contou.
“Os pigmeus são nómadas e os pais não deixam de fazer as campanhas de pesca e caça porque os filhos estão na escola. E os filhos preferem a vida na floresta a vir para escola todos os dias, mesmo que a escola lhes dê as refeições todas. Eles preferem a liberdade da floresta. Por isso, começamos o ano com uma sala com 70 alunos e quando chegamos ao fim do ano temos meia dúzia. Mas voltam no ano seguinte. Vamos fazendo um trabalho muito lento e alguns conseguem aprender a ler”
“Não estamos a dar coisas, mas a criar mecanismos para as pessoas conseguirem ter acesso a elas”, prosseguiu, referindo a necessidade de trabalhar a “promoção humana” e o “respeito pela vida”. “Quando vemos católicos a apedrejar a velhota da aldeia porque é bruxa interrogamo-nos sobre o que é que estamos a fazer”, confessa, acrescentando haver “confrontos entre etnias” e pessoas da mesma etnia nas aldeias.
A missionária conta que um dia a missão foi tomada sob a acusação de defender apenas “as bruxas, os pigmeus e os muçulmanos”. “Estava lá a dormir uma senhora acusada de bruxaria e entraram para a expulsar. Ameaçámos fechar a missão no dia seguinte. Passados três dias tínhamos uma delegação à porta a pedir que reconsiderássemos por causa do apoio às crianças mal nutridas, sendo que alguns dos beneficiários eram filhos dos que lá entraram dias antes aos gritos”, relata sobre a realidade que diz ser “muito difícil, mas desafiante”.
Élia Gomes diz ser “muito difícil” vislumbrar alguma evolução na sociedade centro-africana ao fim de cinco anos de trabalho, mas assegura que ao fim dos mais de 30 que leva a missão comboniana naquele país já é possível constatar algum resultado. Ainda assim, garante que a lentidão do processo não a desmotiva, antes a entusiasma a continuar.
A missionária realça a importância de garantir em simultâneo os cuidados básicos e a espiritualidade aos outros e a si mesma. “Posso não estar a fazer evangelização direta, mas estou lá e estou a apoiar também essa parte”, refere, recordando o ensinamento de um sacerdote: “se vamos fazer catequese, mas eles não têm pão então não estamos a fazer nada”.
A algarvia, que tendo crescido numa família católica fez a caminhada de iniciação cristã, considera que a sua fé cresceu com as experiências missionárias vividas. “A grande beneficiária de todas as experiências tenho sido eu”, garante, admitindo ter sido a componente espiritual o que faltou na primeira missão em que participou através da AMI (Assistência Médica Internacional). Élia Gomes esteve sete meses em 2007 na República Democrática do Congo, responsável pela gestão de um hospital. De regresso a Portugal, não totalmente satisfeita com a experiência, entendeu que “precisava de mais qualquer coisa”.
Numa edição da revista Além-Mar, publicação dos missionários combonianos, descobriu a existência destes e contactou-os a perguntar se a aceitariam. “Bem recebida” em Fátima decidiu prosseguir com a formação comboniana. “Tudo aquilo que fazemos tem um sentido diferente”, considera, explicando que “sempre quis fazer experiências missionárias em África”, mas “a vida foi adiando” o desejo.
No Algarve, Élia Gomes tem exercido voluntariado missionário no Centro Paroquial da sua paróquia, em colaboração com a enfermeira contratada. Após o regresso da primeira missão na República Centro-Africana, foi também enfermeira voluntária, diariamente de 2017 a 2020, no lar das irmãs Missionárias da Caridade em Faro e, mais recentemente, realizou entre 2021 e 2023 uma missão na paróquia de Camarate. “Sentia já há muito tempo a necessidade de ter uma experiência de missão em Portugal”, refere sobre esse trabalho no âmbito do projeto de apoio educativo a crianças do bairro de Fetais de Baixo (Loures) da responsabilidade dos missionários combonianos.

Com o apoio da família que, garante, nunca a pressiona a não ir para territórios de conflito, Élia Gomes partiu no passado dia 2 deste mês para a República Centro-Africana com mais uma missionária portuguesa e outra brasileira. No domingo anterior participou na Missa de envio que teve lugar na sua paróquia.