“Quando começou o homem a criar obras de arte? ”
(H. W. Janson, «História da Arte»)

Depois de assistir, pela primeira vez, ao filme-documentário «A Gruta dos Sonhos Perdidos» em 3-D, contendo a reprodução de um conjunto diversificado de desenhos rupestres, no sul de França (Chauvet), e com mais de 30.000 anos, o meu conceito de Arte e Pintura alterou-se.

Em paralelismo científico, o “homo sapiens”, num impulso, transforma-se e dá lugar a um “novo” conceito, o do “homo spiritalis”. E isto porque os cientistas, impressionados pelos “factos”, viram já uma intenção nitidamente religiosa e simbólica, no carácter, na disposição, enfim, nas formas rituais e de representação das figurações de múltiplos animais da época pré-histórica.

De uma concepção de “desenho” simples o estilo evolui, e transforma-se em “Pintura”, isto é, o grafismo efectuado através da madeira carbonizada (carvão) e das próprias tochas, depois, em esbatidos registos de colorações ferruginosas ou ocres (primeiras tintas) tratando os diversos conjuntos de gravuras que, passam a ser inseridas em locais específicos e com mestria no interior das caves. (Neste caso francês é diverso do ambiente exterior, e como normalmente são achadas em Portugal, através de centenas de insculturas, imagens gravadas incisivamente na superfície da pedra). O “Mestre” (“Adão” ou “Leonardo”) que as reproduziu, e cuja marca encontra-se plasmada num dedo mindinho torcido da própria mão, e que se repete “pintalgado” nas paredes da enorme gruta em Chauvet como de uma assinatura se tratasse, é extraordinário. As pinturas constituem, e na minha interpretação, o expoente máximo de Arte rupestre até hoje descobertas. Algumas das imagens têm incrivelmente mais de 30.000 anos. A qualidade das reproduções é espantosa, a tal ponto que o homem das “cavernas”, selvático, rude e animalesco, desapareceu de vez da minha imaginação.

Este magnificente espaço mais se parece com o interior de uma “Catedral” (brancas naves de estalactites e estalagmites cristalinas) mas, realmente, constitui uma importante “Escola” de formação artística, e com um distinto “Mestre”. Nela estão abrigadas várias gerações de representações exclusivas da fauna animal, e durante duas eras, em intervalos de tempo com mais de 5.000 anos entre si.

A Arte do “Tempo” e, de “Deus”, condensada em imagens da “7ª arte”, e por cerca de 30 “dias” “congelada” em Chauvet.

20.000 anos é o período que se previu para a oclusão definitiva das caves, e etapa que durou até à sua descoberta contemporânea, em meados dos anos 90, e por um paleontólogo que deu o seu nome às grutas.
A sobreposição da mesma figura do “cavalo” (ver foto), como modelo principal, e talvez já “domesticado”, tanto pode conter o efeito do “movimento” de um único exemplar, ou a multiplicação de outros tantos cavalos mas, variados pelas respectivas expressões individuais e particulares.

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“A quarta dimensão de um corpo é a sua coexistência com outro corpo ou com outros corpos.” (Fernando Pessoa, [A QUARTA DIMENSÃO] in «Pessoa Inédito»)

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No entanto, e o que é marcante, são as várias reproduções do mesmo espécime mas, desenhadas em intervalos de longas épocas milenares, e executadas por múltiplas gerações e com vários artistas intervenientes mas, pertencentes todos à mesma “Escola”. O “Objecto” animal é, neste caso, em Chauvet, absoluto. E a relação com a paisagem (e que também se reproduz em linhas sinuosas no perfil riscado de montanhas envolventes) está plasmada junto com o extenso reino animal, através de ursos, mamutes, rinocerontes, touros, bisontes, leopardos, hienas, panteras, cabras, etc., etc. E até o “Leão” está também aí representado e, com todo o detalhe.

Outras enigmáticas formas expressivas, abstractas, e executadas a vermelho através de grafismos simbólicos (estrias, quadrículas, pintas, uma “Única” cruz…) aguardam uma interpretação muito para além da análise técnica artística. A “aparição”, e em especial coincidência num “painel” de efeito “único” (e até aos nossos dias achado), é alusivo a um impressionante “sagrado coração”… e estamos a uma “distância” de 30.000 anos.

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Mestre, meu mestre querido!
Coração do meu corpo intelectual e inteiro!
Vida da origem da minha inspiração!
Mestre, que é feito de ti nesta forma de vida?

(Álvaro de Campos, 1928)

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Vítor Cantinho
Arquitecto e crítico de Arte

O autor deste artigo não o escreveu ao abrigo do novo Acordo Ortográfico