Estas originais “Esculturas” rupestres também são reveladas no resto da Europa, para além deste caso particular no sul de França (Chauvet). Demonstram uma técnica pictórica apurada, associadas às formas representativas que, induzem, por raras vezes, à capacidade de representar até o “Tempo” (4ª dimensão), isto é, aliando a sugestão do “movimento” pelo carácter duplicado e muito expressivo de alguns dos desenhos. Especialmente um “rinoceronte” (ver foto, lado direito superior) que, num dos painéis, também é sugestivo, pela sua forma peculiar e repetida, afigurando-se numa furiosa expressão de investida.

As variadas superfícies das rochas coincidem mas, por raras vezes, com as protuberâncias naturais e seus contornos, inserindo-se variados desenhos nas fendas ou nas reentrâncias, e de modo perfeito. Essa disposição formal conjunta, confere uma configuração superior, e até aspectos de inteligência artística para além das múltiplas especulações interpretativas. Mas que são também fidedignas, acerca da origem do Paganismo e seus rituais gentílicos, através dos signos primordiais, e da interpretação dos diversos grafitos, pelos formatos, nas geometrias, e das marcantes significações de muitas imagens abstractas. Aqui também teriam nascido, seguramente, as primeiras e raras manifestações escultóricas fixas, pelo aproveitamento formal das entranhas das grutas, e através das respectivas adaptações volumétricas.

Estão também expressas numa orgânica e, no conjunto espacial da caverna, através da excelente imagética geral e relativa ao Tema principal: a Caça. E a natureza “Animal” é sempre o “Objecto” (o “corpo”, Fernando Pessoa) e, é exclusiva. Muito curiosamente, não existe um único animal imaginado ou representado sendo sujeito a qualquer atitude agressiva por parte do homem paleolítico (arremesso de zagaias ou de setas). Respira-se paz e tranquilidade na contemplação deste original “Paraíso” bíblico. Para além dos muitos quadrúpedes, surgem muito raras vezes aves (o mocho, e talvez uma única “Águia”…). Esta “Era” artística, também não apresenta um único animal aquático.

As pinturas rupestres, situadas no ventre dos inúmeros subterrâneos de Chauvet, são também o “objecto” do extraordinário documentário fílmico («A Gruta dos Sonhos Perdidos» patrocinado pelo Ministério da Cultura francês), e faz supor que os deslocamentos tectónicos ao longo do tempo (e pela obliteração material das entradas por consequência sísmica), alteraram de vez a abertura principal da cave. Consequentemente, desde há cerca de 20.000 anos que este espaço permaneceu selado, e ao mesmo tempo se modificaram a relação das pinturas com a incidência solar directa e, reflectidamente e de modo natural. No entanto, hoje, os desenhos, as pinturas, e as esculturas, inserem-se abrigados dos olhares na penumbra do seu interior como que de um escultórico e icónico “retábulo” se tratassem.

“Assegurar o êxito da caça” mas, sobretudo, “ servir um rito mágico” (W. H. Janson), constituem interpretações da relação ritual-funcional e místico-religiosa, no início duma alegada mas, evidente «Era Espiritual». E que sempre existiu desde “Adão” pintor, o tal “mestre querido! ” e “…Espírito humano da terra materna…” e do poeta Álvaro de Campos (Fernando Pessoa).

O homem pré-histórico não dominaria ainda a escrita, muito menos a literatura mas, com certeza a Arte cénica teatral, e de modo excepcional em Chauvet. A Arte rupestre destas galerias no sul de França é, junto à “Palavra”, as primeiras concepções de comunicação social humana. Aliadas ao “Canto”, e simultaneamente à ”Dança” ou outras formas de expressão musical, são em síntese paradigmáticas da original “linguagem” artística e espiritual. Nos espaços das grutas acharam-se também vestígios de uma curiosa flauta feita em osso. A condição conjunta de vários artefactos, e de muitos outros factos históricos e no espaço geográfico europeu, levam-nos a afirmar que estamos perante verdadeiras manifestações de Arte. Elas são, em primeira instância “Pictóricas” mas, aludem a uma alma “Musical”, e são já essência “Espiritual”. O aludido instrumento musical, e atrás mencionado, e noutros contextos geográficos reunidos paralelamente, junto às magníficas condições acústicas das grutas, a esse “facto” aludem. A religiosidade espiritual do Paganismo nasceria em permanente revérbero com o reino animal, o tal “Éden” (Antigo Testamento), e pela representação das múltiplas manadas de animais, e através do seu movimento conjunto “sonhado”. O visual efeito nebuloso, a sonora “voz” e da ecoante flauta, teriam adquirido sob o efeito das luzes e sombras do fogo das tochas ou através do reflexo (directo ou indirecto) solar, dinâmicas mágicas, espirituais e religiosas do mundo criacionista. (continua)

Vítor Cantinho
Arquitecto e Ensaísta

O autor deste artigo não o escreveu ao abrigo do novo Acordo Ortográfico