
A algarvia que escreveu um livro a partir da sua experiência de trabalho num dos maiores campos de refugiados na Europa explicou que aquela publicação pretende ser uma “ferramenta” e um “instrumento de partilha”.
Lígia Gonçalves seguiu para o campo de refugiados de Idomeni, no norte da Grécia, na fronteira com a Macedónia, no dia 4 de abril do ano passado e esteve lá 20 dias da primeira vez. Regressou depois nos dois meses seguintes e assistiu ao desmantelamento daquele campo que acolhia entre 14 a 16 mil pessoas quando lá esteve.

“Decidi partilhar convosco isto que é a minha vivência, não para que se entristeçam, mas para que tenham esta ferramenta, para que quando pensarem ou falarem com alguém sobre refugiados tenham outra luz sobre o assunto”, explicou no passado dia 4 deste mês na apresentação do seu livro, intitulado “Desumanamente Humanos”, que teve lugar na Assembleia Municipal de Loulé no âmbito da sessão da rubrica “Livros Abertos”.

A autora lamentou que haja “imensos mitos à cerca dos refugiados”. “Eles não vêm para cá para invadir. Eles não são terroristas. Eles fogem do terrorismo, da morte e das bombas”, garantiu, desafiando os leitores do livro a defenderem aqueles que estiveram na sua origem. “Não deixem que digam que os refugiados escolhem o país para onde vão. Eles não podem escolher. Tudo isso são mitos e não podemos repetir essas coisas e não podemos deixar que as digam ao pé de nós, sobretudo, porque não podemos deixar que amesquinhem ainda mais e tirem mais dignidade às pessoas que já sofrem tanto, já são tão amesquinhadas e já têm tão pouco da sua dignidade”, pediu.
Considerando que “é preciso desconstruir os preconceitos, espalhar a verdade e acreditar que é possível mudar alguma coisa”, Lígia Gonçalves lamentou também a indiferença. “Uma das razões por que existem estas situações no mundo é porque nos esquecemos com muita facilidade que os outros do outro somos nós. Para os outros, o outro sou eu. Antes de terem qualquer nome – como por exemplo refugiados –, são exatamente iguais a todos nós: só humanos”, evidenciou, acrescentando que para aquelas pessoas “a questão que se coloca já nem é uma vida melhor”, mas apenas uma “vida”.

Neste sentido, explicou que elas só resolveram sair do seu país ao fim de terem visto inúmeras vezes serem destruídas as casas onde residiam, bem como os seus locais de trabalho e as escolas dos seus filhos. “Uma coisa que senti neles é que todos queriam voltar para o seu país”, assegurou, adiantando que, no campo de Idomeni, 70% dos refugiados seriam sírios, a maior parte (“talvez também cerca de 70%”) mulheres e crianças, sendo que muitas destas últimas tinham lá chegado sem familiares.

Lígia Gonçalves conta que no dia 20 de maio de 2016, as autoridades não mais deixaram os voluntários entrar no campo de Idomeni e foram percorrendo todo o recinto para avisar os refugiados que tinham de sair. As pessoas foram levadas para campos oficiais, instalados em antigas fábricas, em quartéis abandonados ou ao ar livre. “Vi campos do tamanho de seis campos de futebol, sem uma única árvore, com as tendas e vedação à volta e policiamento”, relata a autora, lembrando um dia, com cerca de 46 graus, em foi a Atenas. “Escrevi imenso na viagem de comboio de Tessalónica para Atenas para ir falar com o senhor embaixador”, contou.

O campo de Idomeni foi desativado e a linha de comboio foi reativada. “Esta fronteira encerrada representava um imenso prejuízo para a Europa”, afirmou, lembrando a importância daquela estação na exportação de mercadorias por via terrestre para os países vizinhos. “O dinheiro que a União Europeia consagrou dar aos países para a recolocação de refugiados foi 0,01% do prejuízo que representava o encerramento desta linha de comboio durante um mês”, assegurou, acrescentando, por outro lado, que “a Grécia precisava de um novo resgate económico e, para que a nova tranche seguisse, o campo tinha de desaparecer dali”.

A autora garante existirem neste momento na Grécia “aproximadamente 45.000 refugiados”, dos quais “25.000 fizeram pedidos de asilo”. “As pessoas continuam lá a morrer porque é a única coisa que lhes resta fazer”, lamenta, lembrando que só foram acolhidos pouco mais de 2.000 ao abrigo do acordo da União Europeia. “Existem mais de 2.400 colocados cá porque continuam a vir e pagar a smugglers para chegarem”, assegura, lamentando o ritmo do realojamento. “A burocracia é mais importante do que a humanidade. A segurança é muitíssimo mais importante do que a humanidade”, critica.
A voluntária aponta não só o dedo à Europa, mas a todo mundo ocidental. “Os terroristas foram indiscriminadamente armados quando se quis derrubar o regime de Bashar al-Assad. O Ocidente não teve consciência de que, distribuindo armas a toda a gente, quem estava a armar era os muitíssimo mais extremistas que Bashar al-Assad”, lamenta.

Lígia Gonçalves disse ainda que o título do livro de 54 páginas tem duas interpretações. “Desumanamente humanos são eles porque são muito humanos em situações muito desumanas. Mas também há outro lado que é o desumanos que nós somos quando achamos que os outros estão longe, que os outros são diferentes, quando mandamos fechar fronteiras, quando achamos que os diferentes não podem vir para o pé de nós”, explicou, acrescentando: “a humanidade pesa mais para o lado deles e a desumanidade para o lado em que eu estou”.

“Viver com aquela gente enriqueceu-me humanamente. O testemunho de força, esperança, partilha e interajuda que me davam era uma obra valorosa. Tenho-os a «viver» dentro de mim e preciso de vos dizer que eles existem, que também sorriem, também sofrem e são exatamente iguais a nós”, complementou na apresentação da publicação que conta as histórias de 27 refugiados que conheceu.

Naquela sessão, o presidente da Câmara de Loulé considerou que “gestos e práticas de vida de enorme generosidade como aqueles que a Lígia assumiu para si, são extraordinariamente importantes, motivadores e «faróis» de esperança para muita gente neste mundo”. “Estes gestos são bonitos, ainda bem que existem, devem existir muitos mais, mas há sempre uma reflexão que é bom também fazer que está antes de tratar da dor dos outros: o que é que está mal neste mundo que faz com que aconteça na vida das pessoas aquilo que é descrito aqui neste livro? É isso que há que compreender”, complementou Vítor Aleixo, lembrando que “quem não conhece as causas de um fenómeno tão dramático como é a guerra estará, por natureza, impedido de agir para alterar essa realidade”.