Ligia_goncalves_idomeni (1)Lígia Gonçalves, jurista de formação, passou 20 dias em abril deste ano a trabalhar como voluntária no maior campo de refugiados da Europa, desativado no final do passado mês de maio. O improvisado Idomeni, no norte da Grécia, na fronteira com a Macedónia, chegou a acolher cerca de 12 mil pessoas e esse era o número de refugiados que lá se encontrava quando a missionária algarvia ali trabalhou.

Lígia Gonçalves já tinha participado em sete missões em Moçambique entre 2004 e 2008 para trabalhar com comunidades locais, crianças órfãs de pais que morreram de SIDA e jovens estudantes e a vontade de ajudar os refugiados surgiu no verão de 2015, pese embora a decisão de ir a Idomeni só tenha sido tomada em janeiro deste ano.

Chegada em abril passado a Tessalónica (Grécia) dormiu num hostel. No dia seguinte, a amiga de uma pessoa a quem perguntou num café como poderia chegar a Idomeni levou-a à associação de voluntários que trabalhavam no campo de refugiados. Partiu com eles para o terreno e com eles trabalhou durante o tempo em que esteve em Idomeni, um campo que se foi formando à volta da estação de comboios local que era a última da linha ferroviária que entrava pela antiga Jugoslávia. Amontoavam-se a ali, antes de a fronteira ser fechada, entre 800 a 1000 pessoas por dia, ficando à espera, durante dois ou três dias, até conseguirem lugar no comboio para seguirem viagem. Quando a fronteira foi encerrada as pessoas permaneceram ali à espera que abrisse e foi assim que se começaram a aglomerar.

Depois disso, a associação que começou por servir bebidas quentes e bolachas àquelas pessoas, colocou em Idomeni quatro contentores nos quais 20 voluntários confecionavam e distribuíam 6.000 refeições quentes diárias.

Ainda antes do encerramento do campo de Idomeni, Folha do Domingo entrevistou Lígia Gonçalves no seu regresso ao Algarve, quando ela se preparava para voltar à Grécia, para perceber como tinha corrido a missão. Texto por Samuel Mendonça

A pergunta «e se fosse eu?» foi a que te fez ir para Grécia?

Olha, eu não sei… Por acaso até gosto desse slogan porque nos leva a estabelecer uma relação pessoal e afetiva com as pessoas que estão a sofrer. É uma pergunta que desinstala um bocadinho e que nos coloca no lugar do outro a pensar que aquela possibilidade também podia ser a nossa. De qualquer forma essa pergunta começou a ser apresentada nas redes sociais, e até na televisão, há relativamente pouco tempo e eu tinha formulado, no verão passado (quando esta tragédia começou a ser mais evidente), a convicção de que iria ter com os refugiados para os ajudar porque a questão estava a mexer comigo. E à medida que foi passando o tempo foi mexendo ainda mais comigo. Acho que a pergunta é um bom desafio, poderia ter sido o meu, no entanto acho que o meu desafio foram mesmo as notícias, as pessoas.

Mas não foste lá apenas para tentar perceber por que é que as pessoas estavam a ficar retidas?

Não. O perceber por que é que ficam retidas foi uma coisa que aconteceu porque estava lá. Eu fui porque sabia que havia pessoas em situações de sofrimento que calculava que seriam desesperantes. E são. E perguntei-me a mim própria: «o que é que tu podes fazer?». Achei que não iria atrapalhar mas ajudar porque falo várias línguas, porque tenho facilidade em relacionar-me com pessoas diferentes em situações diversas, porque sou sensível à dimensão religiosa e cultural e porque vivo em qualquer situação. Tenho a experiência de ir sete vezes [em missão] a Moçambique e de viver, por vezes, em condições também más e de muita dificuldade. Mas, sobretudo, queria estar com aquelas pessoas, abraçá-las e tornar minha aquela dor para poder ajudar a serená-la, ainda por pouco que fosse.

“Não há uma vontade firme para receber as quotas de imigrantes que os países se comprometeram em receber”

Fronteiras encerradas, arame farpado, vigilância aérea. O que é que impede que essas pessoas sejam acolhidas?

Acho que é o facto de o sistema de concessão de asilo e de autorização de permanência estar absolutamente emperrado. Passei a maior parte dos dias no campo mas fui dois dias à cidade de Tessalónica onde está um departamento governamental, o Ministério da Macedónia (que é uma espécie de governo civil daquela zona), que é onde são recebidos todos os pedidos de asilo de zonas próximas. Acho que não há uma vontade firme para receber as quotas de imigrantes que os países se comprometeram em receber.

Portanto, é uma questão política?

É uma questão de falta de vontade. Se os políticos sabem ou não como é que podem fazer para agilizar, ainda não consegui descobrir. Desde que regressei já tentei contactar com todas as pessoas possíveis. Já enviei emails para o Presidente da República, para o primeiro-ministro, falei com todos os deputados eleitos pelo Algarve…

E eles responderam?

Dos deputados do Algarve houve um único que foi atencioso e que me percebeu e um outro que também falou comigo.

E a nível da Presidência da República e do Governo?

O Presidente da República não me respondeu. Eles todos demonstram muita preocupação, mas acho que as pessoas não vão lá.

Os decisores políticos?

Os que têm, realmente, o poder de decisão. Por exemplo, não há um único representante português no departamento europeu que trata estes pedidos naquela zona toda.

Há governantes a visitar o campo de Idomeni?

Não. A Lesbos ou a Atenas têm ido alguns como a rainha da Jordânia ou o nosso primeiro-ministro António Costa. Mas esses campos, apesar de tudo, são menos maus do que o de Idomeni.

Idomeni mantém-se como o maior campo de refugiados da Europa?

Mantém-se. Eu continuo a comunicar com as pessoas do grupo para onde fui e que encontrei lá por acaso. A maioria são mulheres e crianças. Talvez 30% de homens e 70% de mulheres e crianças. Nunca vi nenhuma que usasse burca, embora quase todas andem com véus na cabeça.

“Agora conheço as pessoas concretas que quis ir ajudar”

Quem são os refugiados que chegam ao campo? São muçulmanos? São cristãos?

Naquele campo a maioria dos refugiados são sírios, mas há também palestinos, afegãos, iraquianos e poucos iranianos. São dos mais diversos escalões sociais, económicos ou culturais. Tanto encontramos pessoas que não sabem ler nem escrever, como encontramos professores universitários. A maioria daquelas pessoas são muçulmanas, tal como a maior parte da população portuguesa é católica, mas a maioria também não é praticante. Há ateus e pessoas de outras religiões. Muitos não perderam a fé mas já vão perdendo a esperança porque estão muito desesperados.

Qualquer coisa pequenina que lhes devolva um bocadinho da dignidade é importante porque eles não têm comida, não têm casa, não têm dignidade nenhuma.

Agora conheço as pessoas concretas que quis ir ajudar e não apenas a massa dos refugiados que conhecia antes de ir. Conheço-os com a história concreta de cada um.

São, sobretudo, famílias ou pessoas sozinhas?

Há de tudo, cada caso pelas suas razões. Há alguns homens sozinhos, não muitos porque a maior parte de homens sozinhos já foram para países da Europa, tendo conseguido passar porque foi há mais tempo. Foram os homens de famílias que achavam que seria mais fácil a um homem chegar à Europa, conseguir trabalho e depois mandar vir os restantes familiares. Há as mulheres e os filhos destes homens, que entretanto tiveram de fugir mesmo sem a chamada do marido. Há as mulheres e filhos dos homens que, entretanto, morreram na guerra. E há mulheres e filhos que vieram sozinhos porque não havia condições agora para sair a família toda e os maridos acabaram por ficar. E há famílias inteiras.

Ligia_goncalves_idomeniE idosos?

Há alguns idosos, mas a maior parte das pessoas tem menos de 50 anos.

Os idosos já não têm condições para fazer uma viagem dessas e ficaram entregues à guerra…

Como vês, estou a arrepiar-me. Alguns ficaram, mas há alguns idosos, não muitos. Há pessoas que não imagino como é que chegaram ali.

“É difícil [as crianças] fazerem um desenho que não tenha um barco com gente a afogar-se no mar ou pessoas aos tiros”

Essas pessoas vieram de barco?
Umas de barco e outras por terra. Fiquei com alguns desenhos de crianças a quem pedimos para fazerem desenhos e é difícil fazerem um desenho que não tenha um barco com gente a afogar-se no mar ou pessoas aos tiros.

E que sentimento é que essas pessoas têm, quer em relação aos promotores da guerra, quer a nós, europeus?

Em relação aos promotores da guerra estão muito zangados com eles…

Mas é em relação ao regime de Bashar al-Assad ou em relação ao autoproclamado Estado Islâmico?

Eles têm um desgosto enorme de todos os fundamentalistas, sejam os de Bashar al-Assad, sejam outros que vão lutando numa guerra que eles não querem porque o que eles querem é ter uma vida digna.

Mas culpam tanto uns como outros?

Sim. Não encontrei nenhum que dissesse bem de apenas uma parte. O que eles queriam era ter paz.

E em relação aos europeus?

Pedem que os europeus os ajudem.

“Eles querem que as fronteiras se abram porque é a única hipótese de vida que têm”

Mas não estranham esta atitude da Europa?

De fechar as fronteiras?

Sim.

Eles querem que as fronteiras se abram porque é a única hipótese de vida que têm, não obstante reconhecerem que a Europa já recebeu muitos. Todos eles têm familiares que, ao longo dos últimos anos, já conseguiram ir para países europeus. Mas, ao mesmo tempo, consideram que, divididos por todos os países, não seria difícil o acolhimento.

Mas é verdade o que se diz, que eles não querem qualquer país, que querem aqueles que têm melhores condições?

Não, não é verdade. Os primeiros imigrantes daquelas zonas foram para a Alemanha ou para a França e muitos têm familiares ou amigos que foram para esses países e dizem-lhes que são países com uma boa economia onde lhes é possível refazer a vida. Por outro lado, também são países com uma notoriedade maior e, por isso, os que eles melhor conhecem. E quando começou este novo surto [de refugiados] muitos foram para a Alemanha porque a senhora Merkel até lhe interessou recebê-los porque resolveu a necessidade que tinha de profissionais com formação que não precisou de pagar. Agora é que já são demais. Tanto que eu, em todo o campo onde estive, encontrei um único refugiado médico. Encontrei engenheiros, professores, mas um único médico que me disse que os colegas que saíram primeiro conseguiram ir para qualquer país. Ele teve pena do seu povo e começou por fazer voluntariado nos campos onde estavam outros sírios. Quando viu que a situação estava muito, muito mal ainda teve de esperar mais três a quatro meses – os primeiros da gravidez da mulher –, para não correrem o risco perderem o bebé na viagem e só veio agora.

Fala-se também de mulheres aliciadas com hipotéticas passagens de fronteira em troca de favores sexuais que serão vítimas de redes de tráfico. Apercebeste-te de situações destas?

Há os smugglers que são pessoas que vivem à custa de traficar as pessoas de um sítio para outro. Poderá existir mulheres, sem dinheiro, que terão pago dessa forma para fazer a travessia. Eu não estive com mulheres que me contassem que lhes tivesse acontecido isso. Falei com algumas que me falaram de outras que teriam sido vítimas desses abusos. O que eles dizem todos é que os smugglers são pessoas sem escrúpulos. Algumas mulheres relataram-me que alguns smugglers gostavam de se aproveitar e propunham que parte do pagamento fosse em servícias sexuais, mas não consegui falar com nenhuma que lhe tenha acontecido isso.

“Há crianças que chegam ao campo sozinhas. Estive com um miúdo que me ofereceu a irmã para eu cuidar dela”

A situação mais grave que testemunhaste foi o desaparecimento de crianças do campo?

Sim. Apareceram no campo pessoas estranhas e desapareceram 17 crianças. Há crianças que chegam ao campo sozinhas. Estive com um miúdo que me ofereceu a irmã para eu cuidar dela. O miúdo tinha 13 anos e a irmã nove meses. O sítio onde eles viviam foi bombardeado, os pais deles morreram e os restantes familiares também e eles fugiram com os vizinhos que os ajudaram a chegar ali.

Essa foi a história mais impressionante que testemunhaste?

É uma história representativa e elucidativa que mostra que aquelas pessoas não fogem só da pobreza, fogem da morte. É uma história que também mostra como as pessoas até se entreajudam. E é uma história que me faz pensar qual será o futuro daquelas pessoas. Será que, quando eu voltar lá, ainda vou conseguir encontrá-lo e à irmã? Mesmo que o encontre, legalmente não posso fazer nada. Eles têm de ser acolhidos por um país que tem de institucionalizá-los e só depois é que podem ser adotados. Não sou rica, mas não me custava nada trazer duas crianças aqui para casa, cuidar delas, criá-las e fazer deles meus filhos. Mas não posso. Pura e simplesmente, não posso [voz embargada e olhos marejados]. E percebe-se porque não pode ser tão fácil assim a gente pegar em crianças e trazê-las para nossa casa.

Mas esse acontecimento do rapto de crianças no campo foi comprovado?

Sim, desapareceram mesmo. A partir desse dia, a polícia grega passou a estar nas estradas que vão ter a Idomeni a fazer operações stop.

“Foi das experiências fisicamente mais exigentes que tive”

Como é um dia em Idomeni?

Passada a noite numa tenda grande com os restantes voluntários, acordávamos por volta das 8h [hora local, mais duas horas do que em Lisboa]. Limpávamos a cara com uma toalhita e às 9.30h começávamos a cozinhar, a distribuir tarefas e a atender pedidos. Depois de termos as refeições prontas dividíamo-las pelas caixas e distribuíamo-las pelas pessoas. Depois disso passávamos pelo campo, ajudando no preenchimento de papéis e noutras necessidades. A maior parte das pessoas que estão naquele campo não estão registadas.

Entre as 19 e 20h todos recolhiam às tendas porque anoitecia, incluindo os voluntários. À noite, por muito cansados que estivéssemos – e estávamos porque trabalhávamos 15 horas –, precisávamos de conversar uns com os outros. Antes de irmos dormir por volta das 22/23h, rezávamos. Dormir era só mesmo o necessário. De quatro em quatro dias ou de cinco em cinco vínhamos à cidade tomar banho e dormir num colchão.

É um cansaço agridoce porque por um lado estamos cansados porque conseguimos fazer muita coisa, mas por outro sabemos que o que fizemos foi tão pouco em relação ao tanto que há para ser feito. Foi das experiências fisicamente mais exigentes que tive.

Que condições têm as pessoas no campo?

As pessoas não têm nada e estão ali há mais de três meses. Só há tendas, tipo iglo, limpíssimas. Os únicos contentores que lá estão são os da associação. Há algumas tendas grandes que ou têm famílias grandes ou agrupam crianças para tentar entretê-las de alguma forma pedagógica para não andarem pelo campo sem nada para fazer. Há também uma tenda com algumas casas de banho portáteis que ficam inutilizadas porque não tem sistema de drenagem adequado. As pessoas usam as casas de banho da estação de comboios que, naturalmente, não foram feitas para 12 mil pessoas. Para além da água da estação têm uma bica cá fora. Nós, voluntários, tínhamos um gerador para a energia elétrica e gás para os fogões.

Não há médicos no campo. Vão lá umas pessoas da Cruz Vermelha da Grécia três manhãs por semana para distribuir, sobretudo, fraldas para as crianças e pensos higiénicos para as mulheres, mas não fazem tratamentos. Há depois uma carrinha com um médico e um enfermeiro que vem, às vezes, assistir quem precisa, o que é quase nada para 12 mil pessoas.
Cinco dias antes do meu regresso vieram dizer-nos que tinha nascido uma criança numa tenda para lá irmos.

E quem é que assiste as mulheres e as crianças no parto?

As pessoas que lá estão…

Os voluntários que não tem qualquer formação médica?

Pois. Os voluntários e os vizinhos de outras tendas… Eu e outro voluntário fomos de manhã limpar o bebé e vesti-lo… Tinha nascido havia duas ou três horas e alguém da tenda ao lado é que ajudado no parto e lhe tinha cortado o cordão umbilical.

Existem muitas doenças no campo?

Não percebo muito de doenças, mas habituei, quando fui a Moçambique, a levar sempre três carteiras cheias de medicamentos básicos. Nos primeiros dias apareceu muita gente com tosse e muitas crianças com grandes dificuldades respiratórias e eu fui fazendo de médica.

“As pessoas comem apenas uma vez ao dia”

Como são as refeições no campo?

São feitas com o que há e compostas por arroz, ervilhas, massa e lentilhas com os legumes que houver. Carne nunca houve enquanto lá estivemos. As pessoas comem apenas uma vez ao dia. Também damos produtos para cozinharem em latas que servem de panelas. Cozinham para elas e para a sua família e também partilham com outras pessoas e é assim que todos conseguem comer uma refeição quente. Há dias em que são distribuídas mais refeições porque aparecem voluntários com carrinhas cheias de refeições. Há também alguns refugiados que ajudam.

Há refugiados que se tornam simultaneamente voluntários?

Há muitos. Há uns fixos. Quando vamos abrir as portas dos contentores, eles já lá estão. Ajudam-nos e alertam-nos para necessidades no campo. Há dois dias por semana em que distribuímos roupa e eles ajudam-nos também nisso.

As crianças também só comem uma refeição quente por dia?

Sim, mas damos leite e papas para as mães poderem fazer para as crianças para além dessa refeição.

Os alimentos distribuídos são todos doados?

Sim.

Por particulares ou por empresas?

Por particulares, empresas e algumas Igrejas, muitas evangélicas.

E para tomar banho, como fazem?

Há uma tenda grande com divisórias que tem água. Eles lavam-se, mas é com muita dificuldade.

O apoio oficial que está a ser prestado é por via das autoridades gregas? Não há nenhuma organização da União Europeia que esteja no campo a garantir esse serviço?

Não. Neste campo não está… nenhuma. Há um helicóptero a sobrevoar o campo 24 horas por dia que presumo que seja financiado pela União Europeia.

Portanto é um país que vive com as dificuldades que se conhecem que tem de garantir esse apoio mínimo?

Não havia lá organismo nenhum que estivesse a ajudar aquelas pessoas. São pessoas voluntárias de diversos países que lá estão.

Então quem está a garantir a assistência aos refugiados são os voluntários?

Naquele campo são os voluntários de diversos países e os gregos.

E organizações de defesa dos direitos humanos existem algumas lá?

Não.

“Toda aquela gente que ali está é também minha «família»”

Referiste-te às pessoas com quem te relacionaste como «família de Idomeni». A tua família cresceu com esta experiência?

Dizia há uns dias aos meus filhos que agora também tenho uma «família» lá. Sinto que toda aquela gente que ali está é também minha «família».

“Senti-me intensamente irmã daquelas pessoas”

Por isso escreveste que foram «tempos intensos de vivência profunda do real significado de ser irmã»?

É isso mesmo. Senti-me intensamente irmã daquelas pessoas porque eles são iguais a mim, somos o mesmo, não há nada que nos diferencie, nem religiões, nem tradições, nem culturas, nem nada.

Amaste mais ou foste mais amada?

As duas coisas. Tudo aquilo que fiz foi com muito amor, mas também fui imensamente amada. Não esqueço os olhos das pessoas e a gratidão que sentem por alguma coisa que lhes dás, por não teres medo deles…

“Não encontrei radicais lá. Os radicais não são refugiados”

Por falar em medos, há um que está mais ou menos generalizado entre nós, europeus. A percentagem da população muçulmana na Europa tem vindo a aumentar e muita gente encara como real a possibilidade de alguns países europeus poderem vir a ter presidentes muçulmanos dentro de alguns anos num temido contexto de islamização da Europa e de facilitação para o radicalismo islâmico. Como é que vês este receio?

Eu não tenho esse medo, até porque acho que há radicais em todos os quadrantes. Já caminhámos muito e preferimos a Europa da tolerância à Europa dos extremismos. Estas pessoas só querem uma vida melhor e se é melhor viver com tolerância e com bem-estar, de certeza que eles vão perceber isso e não se vão tornar radicais. Eu não encontrei radicais lá. Os radicais não são refugiados. Os radicais estão a combater numa ou noutra fação da guerra. Aliás, os atentados na Europa têm sido perpetrados por europeus. Há europeus que vão para países islâmicos e se radicalizam. Nós temos muito mais radicais na Europa. É preciso ter esperança na humanidade, seja ela de que lado for.

Portanto, tu vieste mas deixaste lá o coração?

Deixei lá um bocado do meu coração, deixei. Criamos relações muito intensas com as pessoas porque a situação é intensa e pomo-nos cá a pensar no que já teríamos feito se lá tivéssemos continuado. Acho que Deus também me está a ajudar a fazer o melhor nesta circunstância da minha vida [desemprego]. E por ter ficado tão ligada e ter a possibilidade de continuar ligada e de lá voltar, vou mesmo regressar.

Quando?

Quinta-feira [26 maio de 2016].

Por quanto tempo?

Não sei porque só comprei bilhete de ida.